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Uma análise da música “O que será (à flor da terra)” de Chico Buarque

  • Foto do escritor: Katherine Carvalho
    Katherine Carvalho
  • 31 de mar.
  • 5 min de leitura
Chico Buarque, cantor e compositor, contra um fundo preto

Uma coisa que minha mãe sempre diz: Katherine, você nasceu na época errada. Acho isso um absurdo. Só porque meu filme favorito é de 1965 e sou apaixonada pelo Elvis? Nada a ver. Sinceramente, é muito chato eu querer ouvir meu MPB em paz e ter em casa alguém que vive pedindo pra eu tocar Miley Cyrus em vez de Chico Buarque. 


Mas deixando de lado os gostos musicais da minha mãe, que por sinal tem uma mentalidade muito mais jovem que a minha, eu gostaria de avisar que Chico Buarque tem as canções brasileiras mais bonitas de todos os tempos – e eu posso provar. 


“O que será (à flor da terra)” tem hoje, pra mim, um significado dúbio


O que será, que será?

Que andam suspirando pelas alcovas

Que andam sussurrando em versos e trovas

Que andam combinando no breu das tocas

Que anda nas cabeças, anda nas bocas

Que andam acendendo velas nos becos

Que estão falando alto pelos botecos

E gritam nos mercados que com certeza

Está na natureza


Claro que interpretações de música nunca são exatas. É pra isso que a arte serve: pra despertar diferentes emoções e sensações em diferentes pessoas, pra gerar discussão de “ele quis dizer assim” e “não, ele quis dizer assado”, porque cada um tem uma visão de mundo mesmo, e tudo bem. Se a arte fosse um quadrado engessado, eu ia achar muito chato.


Então, essa análise talvez seja dupla. Escuto Chico Buarque desde muito, muito nova, o que prova que meu gosto por coisas antigas vem desde o berço, e desde a primeira vez que ouvi “O que será (à flor da terra)” eu a associei à ditadura. “Ain, de novo a ditadura, Kathe?”, sim, de novo a ditadura. Estamos falando de MPB, Brasil, anos 70, Chico Buarque, exílio, por acaso tem como não falar de ditadura? 


Só que, de alguns meses pra cá, eu tenho visto essa música com outros olhos. Minha personalidade romântica sempre acaba se revelando mais cedo ou mais tarde. Agora eu entendo que a canção pode se referir também a dois amantes. 


Veja só: por um lado, os primeiros versos me dão a impressão de coisas clandestinas, obscuras, proibidas: alcovas (que são quartos pequenos, geralmente sem janelas, o que remete à privacidade), sussurros, velas acesas em becos. Parece o tipo de coisa que o Chico Buarque escreveria para se referir a tudo que era considerado crime durante a ditadura – tudo que deveria ser feito às escondidas, longe do olhar dos militares.


Só que existe outra interpretação: o amor pode ser clandestino e proibido também. E quando falamos de alcovas, onde os amantes poderiam consumar seu amor, e versos que poderiam ser de poemas apaixonados, essa interpretação só se fortalece na minha cabeça. 


E olha que curioso: pesquisando no Google eu descobri que essa música foi escrita para o filme “Dona Flor e seus dois maridos”, então talvez ela fale mais de amor do que eu imaginava. É, parceiro, nem tudo é sobre a ditadura, aparentemente. 

    

Um problema sem solução


Será, que será?

O que não tem certeza nem nunca terá

O que não tem conserto nem nunca terá

O que não tem tamanho


Mas não vou abrir mão da minha teoria tão fácil, tá? Ela continua fazendo sentido pra mim. Na estrofe seguinte, repare que há um clima de desilusão e desamparo quando Chico diz que não há certeza nem conserto, “nem nunca terá”. Não era esse o tipo de coisa que se pensava no período da ditadura? 


Porque é o que minha personalidade pessimista pensa quando algo de ruim acontece por tanto tempo que parece que nunca vai melhorar. Perdão, mas eu tenho depressão há mais de 10 anos, sei do que tô falando. Perdi as contas de quantas vezes pensei que minha mente quebrada jamais teria conserto. 


Uma música sobre amantes ou sobre a ditadura?


O que será, que será?

Que vive nas ideias desses amantes

Que cantam os poetas mais delirantes

Que juram os profetas embriagados

Que está na romaria dos mutilados

Que está na fantasia dos infelizes

Que está no dia a dia das meretrizes

No plano dos bandidos, dos desvalidos

Em todos os sentidos


Essa estrofe é a que mais me deixa em dúvida. Beleza, ele fala explicitamente dos amantes, dos poetas (que são universalmente conhecidos por serem apaixonados patológicos), dos infelizes (corações partidos? Desilusões amorosas? Pode ser qualquer coisa, na verdade), das meretrizes. 


Mas aí é que está: ele também fala dos mutilados, dos bandidos, dos desvalidos. E afinal, eu não sei o que pensar dessa estrofe. Desculpa, mas nessa etapa da análise, vou ficar devendo. Pra mim pode ser tanto uma coisa quanto a outra, e talvez até seja ambas, porque o próprio Chico diz, em todos os sentidos


Não tem decência e nem censura


Será, que será?

O que não tem decência nem nunca terá

O que não tem censura nem nunca terá

O que não faz sentido


Aí ele solta a palavra: censura. Mais um termo dúbio que pode servir para os dois contextos discutidos nessa análise. O que não tem decência? A ditadura não tinha decência, mas alguns amores também não têm, embora num sentido totalmente diferente (é quando você aplica a semântica). 


E a que censura ele estava se referindo? A da ditadura ou a da classificação indicativa para obras de arte, cinema e literatura, tipo de filmes adultos? 


Percebe como esse trabalho de análise é complicado e cansativo? Talvez eu devesse começar a analisar letras de funk, com certeza são muito mais simples e não vão me dar dor de cabeça. 


Chico, o que será que você estava pensando quando escreveu “O que será”? 


O que será, que será?

Que todos os avisos não vão evitar

Por que todos os risos vão desafiar

Por que todos os sinos irão repicar

Por que todos os hinos irão consagrar

E todos os meninos vão desembestar

E todos os destinos irão se encontrar

E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá

Olhando aquele inferno vai abençoar

O que não tem governo nem nunca terá

O que não tem vergonha nem nunca terá

O que não tem juízo (2x) 


Definitivamente, a última estrofe, que se repete 2 vezes, não tem nada de romântico (pelo menos na minha visão). Essa parte é inteirinha sobre a ditadura. Veja só: “todos os avisos não vão evitar”, sabe em 2022 quando houve uma invasão em Brasília no dia 8 de janeiro? Lembra como a gente avisou que algo assim poderia acontecer de novo e ninguém deu bola? Lembra de como eles tentaram dar um golpe, e graças a Deus, não conseguiram? Lembra de como quase deixamos a história se repetir? Pois então. É como se todos os avisos do mundo não pudessem evitar. 


E então Chico diz que os risos vão desafiar, e isso só me faz pensar em como a alegria e a liberdade de rir sem medo é a melhor vingança contra a repressão. Sinos são símbolos de festa, de comemorações, e no verso seguinte ele diz que o hino vai consagrar: seria uma alusão à Constituição de 1988, criada após o fim da ditadura? Um hino finalmente consagrando a volta da democracia?


Os três últimos versos, pra mim, são os mais complexos. Soa como uma crítica, não só à ditadura, mas também aos que a apoiam: aquilo que não tem governo, não tem vergonha das atrocidades que comete, não tem juízo – e repete duas vezes, como se para fixar na memória da gente, que teima em esquecer. 


Posso estar divagando, eu sei. Talvez a música não fale nem de ditadura e nem de romance, mas e daí? A arte é subjetiva, e, afinal, há coisa mais poética do que questionar “o que será que quer dizer” uma música chamada “o que será”?

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