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  • Foto do escritorKatherine Carvalho

Cinza grafite

Foi o verde que me chamou a atenção, primeiro, quando eu entrei na rua da escola do meu filho. Como alguém que é nocauteado na nuca num ringue de boxe — mas no meu caso, foi nos olhos —, eu estaquei no meio da rua e observei os muros grafitados.


Havia cores por todos os lados.


Cores vibrantes, vivas.


O verde estava lá, aqui e ali, saltando aos olhos, exigindo-me que eu reparasse nele. Na bandeira do Brasil, na árvore da Floresta Amazônica. O amarelo aparecia no sol, eu quase podia sentir sua quentura ao me aproximar do muro. O vermelho das rosas, num campo interminável (ainda que o próprio muro tivesse fim), me fazia sentir o cheiro das flores.


Perto do muro, eu estiquei a mão, quase como se pudesse tocar o que estava pintado ali. Podia sentir a textura da bandeira, o cheiro de folha molhada com água fresca da chuva. Eu quase me furei com o espinho das rosas.


— Algum problema, senhor?


Levei um susto ao me afastar do muro, como se tivesse sido pego em flagrante em algum delito. No fim da rua, havia dois jovens, vestidos em roupas simples, um deles tinha a calça rasgada. Chinelos. Bonés surrados. E latas de tinta nas mãos. Eu estava olhando para os artistas. Simples artistas, que me fizeram sentir coisas nada simples. Num muro.


— Nenhum, amigo — garanti com um sorriso. Delicadamente, toquei o muro com a ponta dos dedos. Apontei para as rosas, iluminadas pelo sol. — Foram vocês que pintaram?


De longe, vi um dos moleques sorrir.


— Foi, sim, senhor. A gente tenta trazer um pouco de vida, né. Não é qualquer um que pode mudar o mundo. Mas a gente tenta.


— E conseguem — Eu vi a surpresa nos olhos dele. O outro continuava pintando, mas daquela distância, eu ainda não conseguia ver o que era. — Parabéns. Está muito bonito. A cidade fica mais bonita com o trabalho de vocês.


Agradecido, o menino balançou a cabeça, a lata de tinta pendendo na mão como uma folha

morta. Não entendi a tristeza em seu olhar. Melancolicamente, ele apontou para a calçada oposta.


— Pelo visto não é todo mundo que pensa igual o senhor, irmão.


Acompanhei seu olhar.


Do outro lado da rua, o muro era cinza. Uma camada sólida e opaca de tinta cinza corria de leste a oeste, norte a sul. Indaguei ao menino, “cadê as cores, cadê a vida?”. Ele disse “Estavam ali”. Mas os guardas cobriram o vandalismo. Ao olhar para a parede morta, algo morreu dentro de mim também.


Para mim, artistas.


Para eles, vândalos.


Atrás de mim havia vida, e tudo que eu conseguia enxergar era morte. Estática. Entediante. Monótona. Aos poucos aquela sensação foi se apossando de mim, o cinza cobrindo as cores

vibrantes que me impeliam para a frente, e eu comecei a andar para trás.


— Amanhã isso aqui também estará cinza, senhor — afirmou o artista.


Eu o olhei.


Ao longe, ainda mais longe, o alarme da escola do meu filho tocou.


— Vocês pintarão de novo? — perguntei, antes que o cinza predominasse.


— Acho que sim — respondeu ele.


Eu comecei a andar, dessa vez para frente.


— Até amanhã, então — completei.

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Por Katherine Carvalho

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