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Críticas sociais escondidas em “Madagascar” que você talvez não tenha percebido

  • Foto do escritor: Katherine Carvalho
    Katherine Carvalho
  • 21 de dez. de 2024
  • 7 min de leitura
Alex, Marty, Melman e Glória do filme Madagascar

"Sorriam e acenem, rapazes. Apenas sorriam e acenem”


Eu sei que você reconheceu essa frase! Sabe por quê? Porque todo mundo ama “Madagascar”. E não tô falando da ilha no continente africano, tô falando do filme. 


E embora a classificação indicativa desta maravilha da DreamWorks seja livre, alguns filmes destinados inicialmente ao público infantil trazem mensagens subliminares e reflexões que somente adultos são capazes de entender. 


É o que acontece, por exemplo, em “Madagascar”. 


Primeiro um resumo de “Madagascar” pra quem não lembra


Se você, diferente de mim, não assiste “Madagascar” pelo menos uma vez por mês na Netflix ou no Prime Video, eu trouxe aqui um resumo pra quem não lembra do que se trata o filme.


Lançado em 2005, “Madagascar” conta a história de alguns animais que vivem felizes e bem tratados no zoológico de Nova York, todos contentes em seus cativeiros até que a zebra encasqueta que quer ir conhecer a natureza. 


Com a ajuda dos pinguins, Marty (a zebra) consegue fugir, então seus amigos (o leão Alex, a girafa Melman e a hipopótamo Glória) decidem ir atrás dele para resgatá-lo e trazê-lo de volta ao zoológico. 


Só que tudo dá errado no caminho e eles acabam perdidos na ilha de Madagascar, onde se deparam com a realidade da natureza e de seus instintos mais primitivos. 


O filme é extremamente engraçado e é um dos meus preferidos até hoje. Mas aqui o objetivo não é exaltar essa obra-prima – é mostrar todas as críticas sociais em “Madagascar” que você talvez não tenha percebido. Então lê aí: 


Uma girafa hipocondríaca 


A princípio você pode pensar que “Madagascar” é só um filme engraçadinho para crianças, mas se analisarmos mais de pertinho, logo no início já dá pra perceber que existem ali críticas sociais fortíssimas. 


A começar por Melman. Melman é uma girafa hipocondríaca. Ele adora tomar remédios, fazer exames (principalmente ressonâncias e tomografias), está sempre preocupado com doenças e talvez até tenha TOC. Bizarro, né? 


Essas são características exclusivamente humanas – animais não são hipocondríacos. E você pode até achar fofinho no começo, uma girafa dando um termômetro de presente pro Marty, mas será que eles não quiseram deixar algo subentendido ali? 


Porque em “Madagascar” todos os animais têm comportamentos humanos, como andar em 2 patas, usar os polegares, tomar suco com um canudo… beleza, pode ser só uma maneira de humanizar os personagens para atrair o público infantil, mas eu sempre me pego pensando que eles podem ter feito isso de propósito.


Afinal, no filme, os animais passam tanto tempo tendo só os humanos como companhia que passam a agir como eles, falar como eles, pensar como eles, até a ter transtornos mentais como eles, o que definitivamente não é natural. São animais selvagens, eles nem deveriam estar ali, pra começo de conversa. 


“Na natureza, não tem estrelas assim”


Marty expressa seu desejo de conhecer a natureza logo no início do filme. Alex tenta dissuadir o amigo, argumentando que a cidade é muito melhor e que ele não vai ter nada pra fazer lá, e de noite, diz que “na natureza não tem estrelas assim”.


Mas detalhe: o céu tá todo escuro em Nova York e só tem um pontinho brilhante, que Marty revela ser um helicóptero. Mais uma crítica social – um leão defendendo a cidade enquanto deveria estar na selva. 


E olha que engraçado: o céu de Nova York, assim como o de São Paulo, é quase sempre tão poluído que não se consegue ver estrelas. E quando Alex tenta enfatizar as qualidades da cidade, ironicamente acaba só exaltando a natureza.  

 

O som ambiente


A minha parte favorita, pelo menos no que se refere às críticas sociais presentes em “Madagascar”, é quando Alex pensa que conseguiu convencer Marty a ficar em Nova York e dá boa noite, se preparando para dormir. Nessa hora, ele diz que esqueceram de desligar o som ambiente, e Marty dá um jeito de desligar por conta própria. 


O curioso é que o som ambiente é o barulho da selva, exatamente o que eles ouviriam se estivessem em seu habitat natural, e quando Marty desliga, Alex se sente confortável e relaxado ao ser embalado pelo doce som da cidade: trânsito, buzinas, falatório, gritaria. 


Uma crítica social ao que a gente passa a considerar “normal” quando é submetido a certas situações por um longo período de tempo. Nossa percepção de normalidade muda, e isso é algo horrível demais. 


Esse é o zoológico da Califórnia 


O fato é: nenhum dos animais sabe o que é a natureza. A única referência de natureza que eles têm é uma pintura no muro do zoológico. Então, quando eles chegam a Madagascar, a primeira coisa que Melman fala é que eles estão no zoológico da Califórnia. 


Ou seja, tudo o que eles conhecem é o zoológico. Percebe o quão problemático isso é? E pior: Melman bate a pata numa pedra de Madagascar e comenta que “parece de verdade”. Porque, obviamente, ele nunca viu uma pedra de verdade na vida.


“Os homem”


Mais um sinal de que a convivência com os seres humanos prejudicou o lado “selvagem” dos animais do zoológico. Quando Marty, Alex, Melman e Glória chegam a Madagascar, a primeira coisa que eles fazem é procurar “os homem” (assim mesmo, escrito com o plural errado). 


Na visão deles, “os homem” são os mocinhos da história. Porque, para eles, foram os humanos que cuidaram deles, os alimentaram, e etc e tal. O que eles não percebem é que foram os homens que os tiraram de seu habitat natural e os forçaram a viver em jaulas como produtos para exibição. 


Só que eles normalizaram tudo isso. Então, na visão deles, são “os homem” que vão conseguir resgatá-los e levá-los de volta pro zoo. Porque o zoo, para eles, é o lugar seguro.    


Sonhando com bife


O instinto sempre prevalece, é o que aprendemos observando a trajetória de Alex em “Madagascar”. Quando eles chegam à natureza, descobrem que a comida não vai aparecer magicamente, trazida por garçons, como acontecia no zoológico. E Alex não está acostumado a lidar com os próprios instintos.


Então, quando ele começa a sonhar com bife, fica assustado e acha que está ficando louco. Essa crítica social é particularmente profunda, porque mexe com a questão do primitivo e dos desejos viscerais. 


Quando um animal é retirado de seu habitat natural e passa a ser alimentado por alguém, de forma metódica e com hora marcada, o seu instinto é automaticamente subjugado e o organismo do animal percebe que não há mais necessidade de sobrevivência. 


Mas o que acontece quando esse animal é jogado na selva, sem aviso? Como ele vai se comportar agora, tendo que caçar a própria comida? É aí que o instinto, aquela coisa primitiva, volta à ativa – e é exatamente isso que assusta Alex.


“É que tu é o almoço dele”


É por isso que ninguém acredita quando os lêmures informam que o instinto de Alex é devorar seus amigos. Porque ninguém ali teve contato com o instinto antes, eles não sabem como funciona, talvez nem saibam que cada um deles é, em essência, um bife ambulante.


Alex, inclusive, sente aversão a si mesmo quando seus instintos vencem e ele ataca Marty. E se você parar pra pensar e superar o fato de que é só um filme pra criança, é triste imaginar que, na realidade, essas coisas realmente acontecem. Quantas vezes a gente já sentiu culpa, remorso ou até nojo, por causa de nossos próprios instintos? 


Somos todos animais, no final. Também temos nossos impulsos primitivos, a única diferença é que conseguimos reagir e recuar num nível mais racional. Esse lance de instinto é mais forte que a gente, e não deveríamos nos sentir mal por algo que está fora do nosso controle.  


Entrando numa fria


Os pinguins não saem impunes dessa história. Sendo os principais responsáveis pela ideia de fugir pra natureza, eles finalmente conseguem navegar até a Antártida, mas ao chegar lá, encontram um problema: muito frio. 


“Ah, mas eles são pinguins, eles estão acostumados com o frio”. Aí é que está: pinguins que moram na Antártida estão acostumados com o frio, mas os pinguins de Madagascar moraram a vida toda em Nova York. Pode até nevar em Nova York, mas o frio de lá não chega nem perto do frio da Antártida.


Tanto é o desconforto que eles não ficam na Antártida: no fim do filme, é possível vê-los tomando sol em Madagascar como se estivessem na praia. Percebe como isso está biologicamente, geologicamente, e tudo o mais, errado? Não é certo mexer com o ecossistema assim, gente. 


O gatinho adorou o peixinho


No fim do filme, a gente vê a solução que os pinguins arrumaram para evitar que o leão Alex devore seus amigos: eles dão sushi pra ele comer. E ele gosta, o que parece ser uma ótima alternativa, se você ignorar o fato de que peixes também são animais, então isso é, no mínimo, hipócrita. 


E é bem parecido com a realidade também. Já vi muita gente argumentando sobre o quão errado é comer carne, sobre a importância do vegetarianismo, mas num rodízio japonês detona uma porção de camarão e sashimi. 


Considerações finais


Tudo isso me leva a pensar que “Madagascar”, muito além de ser apenas um filme infantil, é uma crítica social poderosa.  


Mas criticar o quê? Em primeiro lugar, o conceito do zoológico, que por si só já é problemático. Animais não são entretenimento e não são produtos a serem exibidos em vitrines. Leões não deveriam ser trazidos da África para servirem de atração para moradores de Nova York.


“Ah, mas zoológicos servem pra preservar animais em extinção”, nesse caso você está falando de santuários. Existe uma grande diferença, veja só: 

“Animais em santuários geralmente são resgatados de situações de maus-tratos, abandono ou outras formas de exploração. Em contraste, os zoológicos frequentemente adquirem animais de criadores comerciais ou por meio de programas de reprodução em cativeiro, muitas vezes visando o aumento do público e o lucro financeiro.”
Saiba mais sobre o assunto clicando aqui. 

O que vemos em Madagascar não é um santuário: é um zoológico com fins de entretenimento. O próprio Alex se apresenta como “o rei de Nova York”, dançando e fazendo acrobacias para divertir o público. 


E o que mais? Em segundo lugar, a prática de retirar animais selvagens de seus habitats naturais com o único propósito de lucrar em cima disso. É um ato tão cruel que apaga toda a identidade do animal e o obriga a se acostumar com ambientes inadequados e circunstâncias absolutamente erradas, de forma que, quando se deparam com a natureza de fato, se sentem ameaçados, indefesos e oprimidos.


Novamente, isso não se aplica ao santuário, que se dedica a preservar animais em situações de risco. Na prática, o santuário cuida e protege, o zoológico exibe e lucra. Sacou a diferença? 


Um recado da autora


Fica tranquilo, não estou propondo um boicote aos zoológicos, até porque eu amava zoológicos quando era criança. Só fico pensando que há formas melhores de admirarmos e valorizarmos os animais selvagens do que prendendo-os em jaulas. 


Mas sei lá, acho que esse é um assunto pra outro post. Se você gostou do texto, dá uma curtidinha e comenta se quiser. Se não gostou, só sorria e acene.

Obrigada!

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