![Pôster do filme "Ainda estou aqui" com Fernanda Torres](https://static.wixstatic.com/media/41b8a4_fe7c4622b3824980a4b80ca97694e09d~mv2.png/v1/fill/w_788,h_560,al_c,q_90,enc_auto/41b8a4_fe7c4622b3824980a4b80ca97694e09d~mv2.png)
● 2024
● Walter Salles
Duas semanas atrás, quando decidi ir ao cinema assistir “Ainda estou aqui”, eu pensei que ia ser a melhor resenha que já escrevi na vida. Bom, eu fui ao cinema. E quando o filme terminou, eu percebi que eu jamais conseguiria escrever essa resenha. É impossível fazer isso, na verdade, e eu me orgulho muito disso.
Não tenho a habilidade textual necessária, nem conhecimento suficiente, tampouco vivi naquela época para afirmar com autoridade qualquer coisa que seja. E quem sou eu, me diga você, quem sou eu para fazer uma resenha de um filme indicado ao Oscar? Eu não sou ninguém, sou insignificante.
Então isso não é uma resenha. É mais um desabafo, um choro convertido em palavras, um relato cru de tudo o que eu senti assistindo “Ainda estou aqui” no cinema.
Isso foi o que eu senti ao assistir “Ainda estou aqui”
Na escola, meu professor de História se chamava Ivo. Eu era uma de suas alunas favoritas, não só porque ele havia dado aulas para minha irmã mais velha anos antes (o que o fazia nutrir um carinho especial por mim), mas principalmente porque eu prestava atenção em tudo o que ele dizia e bebia o conhecimento que ele despejava na minha cabeça. Ele gostava de ser ouvido. E eu gostava de ouvi-lo.
Eu amava a aula de História. Adorava ver os olhos do Ivo brilhando de entusiasmo quando ele falava sobre outras épocas, outras culturas. É lindo observar alguém fazendo algo que ama. E a aula que o Ivo mais gostava de dar era sobre a ditadura militar.
Já houve muitas tragédias na história da humanidade, isso é fato. Holocausto, escravidão, guerras mundiais, segregação racial, inquisição, caramba, a lista é extensa. Cada país e cada povo enfrentou sua própria desgraça, e tudo isso me dói muito, de verdade. Mas, por algum motivo que eu ainda não sei explicar, a ditadura militar sempre foi um assunto extremamente doloroso para mim.
Veja bem: eu nasci em 2000, 15 anos depois do fim da ditadura militar no Brasil. Não conheço ninguém que tenha sofrido com a repressão. Não conheço ninguém cujos familiares desapareceram. Você poderia pensar “por que eu me incomodo tanto?”. E a resposta é: eu não sei.
Mas eu sou espírita, e tenho uma teoria. Talvez eu tenha vivido, sim, naquela época, afinal. Talvez minha alma ainda carregue as marcas. A verdade é que eu nunca vou saber. E se você não acredita em reencarnação, tudo bem. Pode haver outra explicação também, e estou aberta a ouvir a sua opinião.
Acho que não estou inteira
Eu sabia que “Ainda estou aqui” era um filme triste. Sabia que a premiação da Fernanda Torres no Globo de Ouro como Melhor Atriz em filme de drama não era em vão. Sabia que eu ia chorar. Mas eu não sabia que não sairia inteira. Acho que deixei um pedaço meu lá, no cinema.
E sabe o que é pior? Não há nenhuma cena de tortura, exceto por um breve vislumbre enquanto Eunice Paiva é conduzida pelos corredores de um dos quartéis do exército. E digo que é pior porque isso torna a violência velada, exatamente como era naquele período.
Eu não vi nada, mas eu senti a angústia, ouvi os gritos junto com a Eunice durante os cinco dias em que ela esteve presa. Eu não vi nada, mas parecia que eu estava lá, sendo interrogada junto com ela. Foi uma jogada de câmeras, uma estratégia do diretor realmente muito, muito boa.
Não lembro em qual cena comecei a chorar. Na verdade acho que chorei o filme inteiro. Menos no comecinho, quando somos apresentados à família Paiva, com uma mãe e um pai apaixonados, amorosos com os cinco filhos, que brincam juntos, vão à praia juntos, vão à sorveteria juntos. Não era uma família muito diferente da minha, pra ser sincera.
Isso foi o que mais doeu. Doeu lá dentro, em algum lugar delicado onde ninguém deveria mexer, quando eu olhei para o Selton Mello representando o papel de Rubens Paiva, quando eu lembrei que Rubens Paiva existiu de verdade e que aquela era uma história real, quando olhei no rosto daquele homem feliz e risonho e já sabia tudo que ia acontecer.
Doeu quando aquela família, tão parecida com a minha, foi destroçada por alguns homens armados que invadiram a casa e levaram o pai dizendo que ele voltaria logo. Doeu quando Eunice olhou para o marido pela última vez, da porta, enquanto ele entrava no carro, um olhar assustado, preocupado, cheio de amor e medo. Doeu saber que ela nunca o olharia de novo.
Doeu quando a Eunice não conseguiu dormir, esperando o marido voltar, quando desceu correndo as escadas ao ouvir um barulho, achando que ele tinha chegado. E revolta. Revolta é um sentimento muito presente durante todo o filme.
Uma revolta silenciosa
Me admira o quanto Eunice Paiva é contida. Em nenhum momento ela se descontrola ou perde a cabeça. Não sei se eu conseguiria assistir de modo impassível a vários homens estranhos levando meu marido, vasculhando minha casa, mexendo nas minhas coisas. Mas ela sabe que está lidando com algo muito maior que ela, então ela se contém, o filme todo, mas dá pra ver a revolta silenciosa em seu olhar.
E a minha também. Só que a minha transbordou pelos olhos durante 2 horas inteiras. Chorei quando Eunice vai prestar depoimento e o homem diz que Rubens está no andar de cima. Se estava mesmo ou não, nunca vamos saber. Mas me pus no lugar dela, sentada ali, pensando no meu marido tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe, uma esperança de vê-lo novamente presa no peito.
Chorei quando Eunice é libertada e vê o carro do marido no estacionamento do quartel, um lapso de esperança que logo é sufocada pela violência dos militares. E quando ela chega em casa e entra no banho, se esfregando de alto a baixo, como se pudesse lavar todas as marcas da ditadura junto com as sujeiras da prisão. E quando ela reencontra os filhos. E quando o cachorro morre. E quando eles se mudam para São Paulo, todo mundo destroçado no carro, em pedaços, tentando se manter de pé, assim como eu na cadeira do cinema.
A dor do não-saber
Em dezembro de 2023, eu postei um texto no Instagram chamado “a dor do não-saber”. Você pode clicar aqui para vê-lo. Foi muito doído escrever, mas desde que assisti a “Ainda estou aqui”, ele ganhou um significado totalmente novo pra mim, e relê-lo agora foi incrivelmente doloroso.
Fico pensando na dor do não-saber de Eunice Paiva. Não saber se o marido estava vivo ou morto, se ia voltar ou não, se estava sendo torturado ou não. Agora pegue a dor dela e multiplique por centenas, milhares, na verdade eu nem sei quantas, porque o número exato nunca foi divulgado, foi?
Tantas pessoas sofrendo a dor do não-saber. Procurando por familiares desaparecidos e nunca encontrando. Ouvindo pessoas exaltarem em rede nacional um dos maiores torturadores do período da ditadura militar do Brasil. Tendo por presidente alguém que diz que quem procura osso é cachorro.
E ainda tem gente que diz que não precisamos lembrar? Olha, eu nunca perdi ninguém. Sei que sou privilegiada por chegar à fase adulta sem ter sofrido perdas significativas, por ainda não conhecer a dor do luto em sua forma mais profunda, mas sei também que não estou imune a isso. Eu vou perder alguém, é líquido e certo. Todos nós vamos um dia.
Mas por enquanto eu só posso imaginar. E quando imagino alguém que eu amo me sendo tirado, a dor é quase insuportável. E quando soma-se a isso a incerteza, por Deus, eu preferiria morrer. É por isso que acho inadmissível quando alguém diz que a ditadura foi um período maravilhoso, um período que deveria voltar.
Porque há algo significativamente errado com um ser humano que faz esse tipo de coisa com outro ser humano, e é inconcebível que alguém ache isso aceitável, que alguém ache que isso trouxe qualquer tipo de benefício à sociedade.
Um recado da autora
Isso foi tudo que eu senti assistindo a “Ainda estou aqui”. Acho que não é um filme que eu conseguiria assistir novamente, não por ser explicitamente violento, mas por ser brutal de uma forma cruel.
E é por essa experiência que todos os brasileiros deveriam passar pelo menos uma vez na vida. Um choque de realidade, ser colocado frente a frente com a história, confrontar o passado de modo que todas as provas sejam incontestáveis. Abrir os olhos, se preparar para não esquecer jamais.
Olha, eu não sei como terminar esse texto. Mas, pensando bem, eu também não sabia como começá-lo, e cá estamos. Então acho que vou deixá-lo assim: em aberto, inacabado, um fim em suspenso. Parece conveniente, não é?
Um texto sem ponto final, uma ferida aberta ainda sangrando. Sem acabamento, sem remédio. Um texto perfeito para um país que ainda tenta costurar as próprias cicatrizes.
Porque os desaparecidos, os mortos, os torturados, todos eles ainda estão aqui, nas famílias despedaçadas, nas vozes que ninguém quer escutar, nos olhos de quem ainda pede justiça. E enquanto houver lembrança, haverá resistência. E haverá também alguém que escreva, que filme, que grite. Ainda estamos aqui.
Nossaaa verdade
Muito triste e real