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  • Foto do escritorKatherine Carvalho

Uma resenha do filme “Guerra civil” com Wagner Moura: por que eu nunca seria repórter de guerra

Pôster do filme "Guerra civil" com Wagner Moura

● 2024 

● Direção: Alex Garland


Esta resenha do filme “Guerra civil” com Wagner Moura contém (muitos) spoilers


Então, se você ainda não assistiu ao filme “Guerra civil” de 2024 e não gosta de saber como tudo acaba, eu recomendo fechar esta página imediatamente. Agora, se você, como eu, gosta de saber no que está se metendo ou se já sabe o fim do filme, pode continuar, acho que você vai gostar. E se não gostar, paciência. 


Antes de começarmos a falar do filme em si, devo dizer que se você não acompanha o contexto político atual (não só do Brasil, mas do mundo como um todo), provavelmente não vai entender o enredo em toda a sua profundidade e plenitude. Claro, vai ser legal, tem muito tiro e bomba pra quem gosta de ação, mas quando falamos em história, em fatos, em subjetividade, o espectador tem que ser minimamente alfabetizado politicamente pra desfrutar da complexidade de “Guerra civil”.


Agora, sim, podemos partir pra resenha do filme "Guerra civil".


“Guerra civil”, o filme, tem uma atmosfera ligeiramente familiar


Fica tranquilo, não vamos brigar por política aqui (a menos que você deixe um comentário ofensivo neste post, daí eu já não prometo nada). Só deixando claro, para começo de conversa, que este perfil pertence a mim — e eu sou de esquerda. Não concorda com meu posicionamento político? Lamento. Dito isso, vamos prosseguir.   


O filme “Guerra civil” já começa com um discurso. E se tratando de um filme sobre política, quer maneira melhor de começar? Pra mim foi perfeito e instantaneamente despertou uma sensação de familiaridade horrível, porque o presidente dos Estados Unidos, em seu discurso, usa bastante as palavras “pátria”, “Deus” e “família”. 


Se você ainda não sabe bem do que se trata “Guerra civil”, é isso mesmo: uma guerra civil. Só que diferente do que estamos acostumados a ver no cinema, esse filme não retrata os EUA contra um inimigo externo ou alienígena — eles não estão lutando contra a Rússia nem contra a China, muito menos contra invasores de outros planetas. Eles estão lutando entre si, uns contra os outros. EUA contra EUA. EUA, repartido ao meio, polarizado, dois extremos lutando pelo poder.


Soa familiar? Pois é. A grande questão aqui, no entanto, é que não fica claro quem está lutando contra quem. Quem é o lado A e o lado B? Quem é o bom e quem é o mau? De que lado eu, espectador, devo ficar? Por que diabos eles estão lutando, afinal (como se precisasse ter um motivo)? 


Aí é que entra a subjetividade. E você precisa ter muito repertório político pra conseguir extrair algumas informações daquele cenário todo. O diretor fez isso de propósito: ele deixou o enredo de certa forma aberto para o público decidir de que lado fica ou no que acredita, e para que a gente desenvolva nosso próprio entendimento. Assim como é na vida real. Cada um por si. Não vai ter ninguém na sala de cinema te explicando o que está acontecendo, cena por cena, frame por frame, assim como não tem ninguém nos explicando o que está acontecendo agora, aqui, hoje. Se você não entende, vai continuar sem entender, a menos que corra atrás das informações (as verdadeiras, de preferência), é assim que funciona. 


Mas eis alguns fatos: de um lado, temos um presidente fascista e ultraconservador (e não sou eu que estou dizendo isso, é ele mesmo que diz no início do filme e podemos ver que é verdade no decorrer da história) com seu séquito de apoiadores. Do outro lado, temos uma população amedrontada e uma galera da oposição determinada a tirar o presidente do poder. E, no meio disso, um grupo de jornalistas que tenta se manter imparcial enquanto fotografa tudo e registra a guerra para a posteridade.


Afinal, é isso a imprensa, não é? Registrar e transmitir. Escrever e divulgar. Sem opinar. Eu, como profissional formada em Jornalismo, apesar de trabalhar com marketing, sei bem o que é isso. Manter-se imparcial não é fácil, mas o meu trabalho é esse, eu fui treinada pra isso. Eu pego a notícia, eu lapido a notícia para que fique fácil de compreender e depois divulgo a notícia. Não um participante ativo com direito a palpite, apenas um canal de transmissão, um pombo correio. 


Mas como eu disse, eu tenho um diploma de jornalismo mas não sou jornalista. Eu trabalho com marketing. Então essa é a minha opinião: ainda que não pareça, nenhum jornalista é, de fato, imparcial.


A tortura da imparcialidade num cenário de guerra


Logo no início do filme, acompanhamos a fotojornalista Lee Smith (interpretada por Kirsten Dunst) cobrindo um protesto e salvando a vida de Jessie, uma jornalista ainda em início de carreira, da explosão de uma bomba. Acontece que Jessie é fã de Lee, então meio que a idolatra (quem nunca idolatrou um jornalista, que levante a mão, porque atirar pedra é muito agressivo). 


Os protagonistas, na prática, são três: Lee, Joel (Wagner Moura) e Jessie. Mas também somos apresentados a Sammy, um jornalista mais velho e aparentemente já aposentado, que faz parte do grupo. A ideia central do filme é a seguinte: esse grupo de jornalistas quer atravessar o país em guerra até Washington D.C. para testemunhar a queda iminente do governo fascista. Joel quer fazer uma entrevista com o presidente deposto e Lee, obviamente, quer fotografar tudo. Sammy gostaria muito de ir junto nessa empreitada, mas como é velho, sabe que não conseguiria acompanhar o ritmo do grupo, então Lee concorda em levá-lo junto apenas até metade do caminho. 


Só que Joel permite que Jessie viaje com eles, o que a princípio não agrada muito a Lee, que acha a menina jovem e inexperiente demais. Realmente, com o desenrolar das cenas, a gente vê mesmo que Jessie é jovem e inexperiente, mas a guerra tem o poder de endurecer até mesmo a mais delicada das pessoas, e ao fim do filme, o que vemos é uma Jessie totalmente diferente da do início.


A caminho de Washington D.C., eles precisam reabastecer e param num posto de gasolina controlado por um grupo de homens armados. É aí que Jessie tem o primeiro contato com a brutalidade da guerra e a crueldade humana. A frustração por ter se deixado impressionar pela cena dos dois homens torturados, por não ter conseguido, devido ao choque, capturar o momento com uma foto. A culpa por não ter conseguido salvar os homens da morte. A raiva por não se sentir uma jornalista boa o suficiente (ou tão boa quanto Lee, que teve a frieza de sangue para pedir para o assassino posar ao lado das vítimas numa foto). E vemos a dureza de Lee, uma jornalista já calejada, dizendo para Jessie com palavras rudes que se ela não consegue enfrentar aquilo, então talvez essa carreira não seja pra ela.


É por isso que eu resolvi trabalhar com marketing. Ser imparcial, em alguns momentos, é literalmente uma tortura.


A alienação dos que continuam vivendo normalmente


Parece um replay, um déjà vu, chame como quiser. Mas em determinado momento do filme, o grupo de jornalistas faz uma parada em uma cidade que não se parece em nada com o cenário de guerra testemunhado até então. Trata-se de uma população que continua vivendo normalmente, totalmente alienada, ignorando o que acontece no resto do país. Porque, ora, “enquanto não é comigo, não preciso me preocupar”, certo? Esse parece ser o pensamento daquela cidadezinha que permanece com suas lojas abertas e moradores passeando pelas ruas, da mesma forma que algumas pessoas aqui no Brasil continuaram dando festas e dispensando o uso das máscaras durante a pandemia do coronavírus.  


Negacionismo. Existe no mundo todo. Isso te assusta ou te conforta?


Wagner Moura em “Guerra civil”


Me dá uma pontinha de orgulho assistir um brasileiro num filme tão bom e estrangeiro. Quem acha que o Brasil é só Anitta e Pabllo Vittar, não assistiu Tropa de Elite e nem Guerra Civil. Nada contra a Anitta nem contra Pabllo: gosto dos dois. É que os gringos parecem enxergar só isso na gente, e isso me irrita profundamente. 


Mas Wagner Moura atuou tão perfeitamente no papel de Joel que eu até hoje fico pensando nesse filme mesmo tendo assistido há vários dias. Marcante não só pelo jeito descolado, debochado e até um pouco largado do personagem, mas também pelos inúmeros cigarros fumados durante a trama, duas ou três garrafas de vodka bebidas e uma porção de palavrões, e pela aparente incapacidade de se abalar com qualquer outra barbaridade que encontre pelo caminho, Joel a princípio parece ser apenas mais um dentre os três (ou seria quatro?) protagonistas. Só que tem uma cena, mais ou menos no meio do filme, que pelo menos pra mim, transformou Wagner Moura no único protagonista de “Guerra civil”.


E se você assistiu, provavelmente sabe de qual cena estou falando. Se não assistiu e não se importa em receber spoilers, permita-me que eu fale sobre ela aqui. 


A certa altura da viagem, dois outros personagens, colegas de Joel e Lee, se juntam ao grupo. São dois homens, Tony e Bohai, jornalistas de Hong Kong. Tudo parece ir bem (bem até demais) quando Jessie e Bohai desaparecem. Mais tarde, o restante do grupo descobre que os dois foram pegos por militares que pretendem executá-los para descartar junto com outros cadáveres numa vala comum. Lee sugere que eles vão até lá para tentar resgatá-los, mas digamos que os militares não são exatamente amigáveis. 


Quando Joel revela que aqueles são seus amigos, um dos militares atira em Bohai sem hesitação. O pânico se instaura e enquanto Joel tenta convencer os militares a deixarem Jessie viva, o assassino de Bohai pergunta a Tony qual sua nacionalidade. Quando Tony diz que é chinês, o militar o mata também.


E temos certeza absoluta que todos ali seriam mortos se Sammy, que ficou para trás por ser velho demais, não tivesse aparecido de repente com a caminhonete e atropelado os militares para resgatar Joel, Lee e Jessie. Nessa agitação toda, os três protagonistas só vão reagir de fato aos acontecimentos recentes quando já estão longe do perigo — é quando a adrenalina baixa que a dor aparece e o medo descarrega a tensão no corpo inteiro. 


Cada um reage ao terror de uma maneira. É muito individual essa coisa de estar sob a mira de uma arma, vendo seus amigos serem assassinados um por um, sabendo que você provavelmente é o próximo — é impossível saber como você vai reagir a algo até que você mesmo passe pela mesma situação. Acho que é por isso que a cena seguinte aos assassinatos de Tony e Bohai são tão impactantes. 


Dentro do carro, todo medo, o pavor, o desespero, a tensão dos últimos minutos se transforma em reações incontroláveis, animalescas, primitivas. O vômito que sai contra a nossa vontade, o choro gutural e dolorido, o grito estrangulado na garganta que finalmente se liberta, mas não há som, porque a trilha sonora do filme é tão impecável que todos os gritos do Wagner Moura são abafados por músicas que a princípio parecem inadequadas à gravidade da cena — só que isso também é proposital. 


Do início ao fim, essa cena foi, de longe, a que mais me marcou. Toda vez que penso nela ainda sinto arrepios. 


Contudo, passado a maior parte do drama, algumas perguntas ficam no ar: de que lado esses militares estavam? Pelo quê lutavam? Por que iam matar os jornalistas? Nós, espectadores, ficamos com raiva dos militares porque nos afeiçoamos aos protagonistas, mas nem ao menos sabemos de que lado estão. Só sabemos que mataram os amigos dos nossos protagonistas, e só por isso eu já os odeio e sei que boas pessoas não são. Mas o lado político, qual é? Em qual extremidade eles estão? Estão apoiando ou se opondo ao presidente? Eu tenho minhas teorias e convicções baseadas no meu posicionamento político, mas não tem como ter certeza. E afinal, eles nem sequer se conheciam. Pra quê tanta violência, tanta tortura? Em nome de quê? 


O mais desesperador é que não há respostas. Guerras assim continuarão a acontecer e filmes assim continuarão sendo produzidos para retratar a barbaridade para uma população que não quer (e nem vai) aprender com seus erros.


É por isso que eu nunca seria repórter de guerra


Acho que você entendeu o título do texto agora. É preciso muita frieza para enfrentar esses tipos de situações e ainda conseguir dormir à noite. É preciso muito estômago para fotografar um homem morto em combate. É preciso muita coragem para se enfiar no meio do tiroteio em busca da foto perfeita. 


E eu, infelizmente, sou covarde.


Peço perdão pelo tamanho do texto. Não pretendia escrever tanto, mas da mesma forma que uma guerra não se resolve em poucos dias, uma boa resenha também não se escreve em poucas palavras.

Obrigada!

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Por Katherine Carvalho

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