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Uma resenha do filme “O quarto de Jack”: um retrato lindo, trágico e brutal da relação entre mãe e filho

Foto do escritor: Katherine CarvalhoKatherine Carvalho
Pôster do filme "O quarto de Jack" com Brie Larson

Todas as resenhas deste site contêm spoilers.

Se você não gosta de spoilers, a autora recomenda que feche este post e volte apenas quando já tiver assistido o filme.


● 2015

● Direção: Lenny Abrahamson


A relação entre mãe e filho é o verdadeiro protagonista — você vai entender isso nesta resenha do filme “O quarto de Jack”


Narrado na visão de Jack, um menino de 5 anos, o filme conta a história de Joy, uma mulher que vive confinada num quartinho com seu filhinho, criando para ele, ali, um universo cheio de magia, possibilidades e horizontes intermináveis. O intuito: esconder dele a terrível realidade. Para Jack, o Quarto é o mundo — para Joy, é o lugar onde ela tem sido mantida presa nos últimos 7 anos por seu sequestrador, o Velho Nick. Em determinado momento, tudo se torna insuportável e Joy planeja um mirabolante plano de fuga, e para isso, ela vai precisar da ajuda de Jack.


Um misto entre beleza, dor e tristeza


Antes de tudo, devo dizer que esta resenha do filme “O quarto de Jack” foi muito dolorida de escrever, mas não necessariamente no mau sentido. É que é um filme muito especial pra mim — nunca chorei tanto. E devo dizer também que esta resenha contém SPOILERS. Emocionante e surpreendente, eu diria que “O quarto de Jack” não é a escolha mais saudável para colocar na Netflix quando se quer se distrair, não por ser ruim ou triste, mas por ser bonito e pesado de uma forma quase dolorosa e dilacerante — quem assiste não sai inteiro da experiência, sempre se estilhaça um pouquinho. 


Separado em duas partes (dentro do Quarto e fora do Quarto), o filme acompanha a lenta descoberta de Jack de que o mundo que ele conhecia não passa de uma mentira, e sua relutância em aceitar a ideia estapafúrdia de fuga da Mãe me lembra a vontade de alguns em permanecer na ignorância: porque é mais seguro, é mais confortável, mudar é assustador, você nunca sabe o que vai encontrar lá fora.


O primeiro vislumbre do céu pela malha do tapete


A primeira parte, que se encerra no momento em que Jack vê o céu, azul e límpido, ao se desenrolar do tapete onde a Mãe o escondeu, pode parecer, a princípio, um tanto enfadonha por se restringir a apenas dois personagens num quartinho minúsculo, mas a direção, a iluminação, a jogada de câmeras e, acima de tudo, a atuação de Brie Larson e Jacob Tremblay, combinados, nos fazem mergulhar na própria mente de Jack e enxergar o mundo como ele enxerga, mesmo lá dentro: infinito, sem limites, estendendo-se para todas as direções, ida e volta.


Gosto particularmente, quando eles estão dentro do Quarto, da cena em que Jack descobre o rato — até então, ele nunca havia visto outra criatura viva na vida e fica encantado por aquele acontecimento. Gosto ainda mais da reação de Joy ao presenciar a cena: ela não só espanta o rato, como também tem a intenção de matá-lo. E isso é curioso, porque Joy não via outra criatura viva há tanto tempo quanto Jack, entretanto, as duas reações foram completamente diferentes, o que nos leva a pensar que talvez nossas vivências digam respeito a nós muito mais do que nossa essência. Joy quis matar o rato porque já tinha conhecido maldade, sujeira, perversão demais e não suportava a ideia de um animal roubando sua comida — enquanto Jack, que era puramente inocente e ainda acreditava em magia, estava obviamente disposto a dividir seu bolo de aniversário com o rato. 


E então há um momento perfeito em que a gente percebe a inocência de Jack indo embora: enquanto a Mãe está triste e dorme demais, depois de terem tido a conversa onde Joy finalmente revela a Jack a verdade sobre o Quarto, Jack passa um dia inteiro sozinho tendo por companhia apenas a sua sombra e o carrinho de controle remoto que Velho Nick trouxe para ele de presente e que tinha sido motivo de tanta alegria apenas pouco tempo atrás. Mas naquele momento, a verdade está se instalando na mente de Jack e o espectador percebe que ele já está diferente — surgiu dentro dele um novo sentimento, algo ruim que macula a pureza, mas não há o que fazer, porque é a ordem natural da vida. Pode ser raiva, ou rancor, ou somente irritação, e Jack arranca todas as rodas do carrinho de brinquedo e depois o joga inteiro no lixo. Mas o que há de mais lindo ocorre alguns momentos depois no filme, quando Joy se recupera da tristeza, verifica a lata de lixo e percebe o que Jack fez. No entanto, escolhe não dizer nada — a forma mais clara de respeito que existe.


Uma linda (e peculiar) relação entre mãe e filho


Uma das coisas que eu mais gostei é a relação que Joy construiu com Jack ao longo do tempo. Ela claramente não estava preparada para ser mãe e, mesmo assim, tomou para si a tarefa de criá-lo da melhor forma possível naquele espaço limitado que tinham, e o respeito óbvio, a cumplicidade, a devoção que um nutre pelo outro toca meu coração de uma forma estranha e profunda. Mesmo em se tratando de atores, é uma emoção que não vejo com frequência em famílias da vida real. Não me admira que este filme tenha ganhado o Oscar.   


Muitos elogios se devem às expressões faciais (ou à falta delas) de Brie Larson. Sua atuação foi, de longe, uma das melhores que eu já vi na vida. Ressalto a cena em que ela enfim põe seu plano em prática, enrolando Jack no tapete e implorando que Velho Nick o leve embora porque ele supostamente está morto (o que, é claro, não passa de uma armadilha). Quando Velho Nick fecha a porta, Joy solta toda a angústia e a aflição que vinha sentindo até então num único suspiro, e sua respiração ruidosa dói na alma de quem assiste. Você sente o sofrimento dela, a dúvida se vai dar certo, se Jack será descoberto, se Velho Nick fará mal a Jack, porque quando a porta se fecha, tudo pode acontecer, e esse é o problema. O problema de Joy pesa também nos nossos ombros como se estivéssemos partilhando o Quarto com ela.


Fora do Quarto de Jack


A partir de então, a cena é toda de Jack, e dá-se início à segunda parte: o fora do Quarto. Os instantes de suspense que se seguem dão um toque especial ao enredo do filme, e eu me vi prendendo a respiração, na expectativa, quando o carro desacelera, faz uma curva, e Jack pula, desorientado e atrapalhado, caindo no chão ao tentar correr para longe do Velho Nick. Por um momento de puro terror, eu achei que tudo estava perdido — o Velho Nick alcança Jack, mas Jack consegue escapar, e é só nesse momento que a gente consegue voltar a respirar normalmente, porque parece que tudo vai se resolver. No entanto, os problemas de Joy e Jack estão apenas começando. 


O “fora do Quarto” não é, nem de longe, tão bom quanto Joy tinha sonhado. A reintegração à sociedade da qual fora arrancada repentinamente é dolorosa e exaustiva. Joy não estava preparada para os holofotes, para a atenção — não estava preparada principalmente para o turbilhão de emoções que enfrentaria dentro de sua própria cabeça ao sair do Quarto. Uma das cenas mais marcantes é, sem sombra de dúvidas, aquela onde Joy confessa que ela “deveria estar feliz”. Porém, ela obviamente não está — sair do Quarto não fez com que as lembranças do que ela sofreu se apagassem, e mesmo sendo um destino terrível, ainda assim Joy passou 7 anos confinada, e quer queira, quer não, todo mundo se acostuma às situações nas quais somos forçados a ficar, por piores que sejam. Ela odiava o Quarto, mas o Quarto foi sua casa — como então esquecer o Quarto e voltar a amar o mundo lá fora, por mais horrível que o Quarto fosse? A mudança é brutal e desconfortável, por mais que ela a tenha desejado.


Para Jack, tudo é novo e interessante: sua adaptação é rápida e linda de se ver. Ele logo estabelece conexões profundas de afeto com a família de Joy, que também é a sua, especialmente com a avó e o avô postiço. A reação do avô biológico, embora revoltante para Joy, é um processo de rejeição natural para quem convive com a maldade: afinal, o avô biológico via em Jack o filho do sequestrador de sua filha, o filho de um estuprador, ainda que Jack não tivesse nada a ver com isso. E apesar de sentirmos imediatamente uma óbvia aversão pelo personagem, somos obrigados a entender seu comportamento. Não deve ser fácil, afinal, estar na pele de nenhum dos integrantes daquela família.


Por que a gente nunca deve tentar acabar com tudo


Por fim, as cenas derradeiras da tentativa de suicídio de Joy, o momento em que Jack a encontra caída no banheiro, o grito estridente de puro terror que a criança solta, tudo é pesado demais, e a aflição fica entalada na garganta. No entanto, tudo se reverte quando Jack pede ajuda à avó para enfim cortar seu cabelo, porque quer “enviar sua força para a Mãe”: isso por si só parece renovar a esperança no espectador. E realmente, apenas algumas cenas depois, Joy está de volta, recuperada e um pouquinho mais forte, pronta para cuidar de Jack como sempre fez. Ainda chateada, Joy confessa ao filho que não é uma boa mãe, e então Jack profere a fala mais incrível (na minha opinião) do filme inteiro: “mas você é a Mãe”. E está resolvido. Na prática, nada disso importa — boa ou não, Joy é a Mãe, e sempre vai ser, e eles estão juntos novamente. Tudo estava bem.  

 

O enredo é problemático e polêmico, nos faz pensar coisas e repensar muitos de nossos ideais. Incrível como o filme se desenrola sem que a gente perceba, nos prendendo à cadeira do início ao fim — e ainda mais incrível que você fique pensando na história muito, muito depois de o filme ter acabado.

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