![Capa de "Uma família feliz", livro de Raphael Montes](https://static.wixstatic.com/media/41b8a4_42679fd1523645ad824028855fac63d8~mv2.jpg/v1/fill/w_147,h_147,al_c,q_80,usm_0.66_1.00_0.01,blur_2,enc_auto/41b8a4_42679fd1523645ad824028855fac63d8~mv2.jpg)
Todas as resenhas deste site contêm spoilers.
Se você não gosta de spoilers, a autora recomenda que feche este post e volte apenas quando já tiver lido o livro.
● Uma família feliz
● Raphael Montes
● 347 páginas
● Lançamento em 2024
Não faz muito tempo que comecei a gostar de livros de suspense. Comecei com C. J. Tudor e depois fiquei sabendo que havia um tal de Raphael Montes, um escritor brasileiro que era especialista em livros de suspense e terror.
Nunca fui fã de literatura brasileira, mas de uns anos pra cá eu resolvi parar de supervalorizar a cultura norte-americana e olhar um pouco mais pra dentro de onde eu vivo. Então comprei vários títulos do Raphael Montes, “Jantar secreto” e “Suicidas”, e deixei eles guardados, sem coragem de lê-los. Não sei se tenho estômago, sabe.
Mas um dia no cinema vi passar o trailer de um filme que parecia interessante, com a Grazi Massafera e o Reynaldo Gianecchini, e quando descobri que era baseado num livro do Raphael Montes, bom, pode imaginar, eu comprei o livro na mesma semana.
Essa resenha de “Uma família feliz”, livro do Raphael Montes tem muitos (repito, muitos) spoilers. Eu gosto de spoilers. Se você também gosta, continua lendo. Se não gosta, só lamento. Então lá vai.
“Uma família feliz”, livro de Raphael Montes
Em “Uma família feliz”, conhecemos de perto a história de Eva, uma mulher da classe média alta carioca que tem, aparentemente, a vida perfeita: um marido bem-sucedido, advogado rico, filhas gêmeas lindas, um apartamento chiquérrimo num condomínio luxuoso na Barra da Tijuca e um trabalho que ela ama – fabricar bebês reborns.
A chegada de um novo bebê parece ser a cereja do bolo, só que Eva não contava com uma depressão pós-parto. Depois, quando o bebê e as meninas aparecem misteriosamente machucadas, a vida de Eva vira um verdadeiro inferno.
O fardo invisível da maternidade
O livro inteiro é narrado em primeira pessoa pela Eva. O tempo todo acompanhamos o olhar dela, o pensamento dela, as ações dela, os fatos sob o ponto de vista dela. Essa é a melhor técnica dos escritores para fazer o leitor criar conexão com o personagem – você não é o observador da história, você é o protagonista da história junto com a Eva.
Apesar de Eva descrever Vicente como um marido perfeito, logo no começo a gente percebe que essa imagem endeusada é uma ilusão da cabeça dela (nem sempre a gente quer ver o que está diante dos nossos olhos).
Primeiro tem a aparente obsessão de Vicente por um filho homem. Quando Eva anuncia a gravidez, a reação de Vicente chega a ser patética. Pra quê tanta empolgação ao saber que vem um menino? Você já tem duas filhas, querido. Não tá contente com elas, não? Isso me irritou. “Machista”, cheguei à conclusão já no início.
Quando a gravidez de Eva avança, percebemos o quanto Vicente é tóxico. Na festa de aniversário das gêmeas, com Eva já barriguda, prestes a parir, perguntam que tipo de parto ela vai querer, se normal ou cesárea, e antes que Eva consiga responder, Vicente se pronuncia dizendo que optaram pelo parto normal. Amado, quem vai parir é ela. Quem decide é ela. Quem responde é ela. O fato de Eva não dar umas patadas nele também me irrita.
Os sinais já estavam lá, mas o sonho fantasioso de Eva da família perfeita segue em frente. No parto, Eva claramente rejeita o filho e começa a “fingir” ser uma mãe amorosa para ninguém perceber que ela tem aversão ao bebê. E de fato, ninguém percebe. Porque quando nasce o bebê, morre a mãe – ninguém mais liga pra ela, só pro Lucas. Eva fica sozinha, ainda que rodeada de pessoas.
O bebê não mama. O bebê não dorme. O bebê só chora. Eva também não dorme. Eva não toma banho. Eva não come. Eva não trabalha. Vicente trabalha. Vicente ajuda como pode quando chega em casa. As gêmeas também precisam de cuidados. Vicente diz que não podem contratar uma babá agora. Eva enlouquece. Ninguém pode julgá-la.
O colapso de uma mãe cansada
Conforme avança a leitura, todo mundo consegue ver Eva anulando a si mesma em favor das crianças. Essa anulação não dói só nela. Ela está desesperada, cansada, perdida, frustrada, furiosa. Ela se culpa por não ter uma conexão com o bebê, por não ser uma “mãe perfeita”, por não se reconhecer mais.
Acho que o ponto crítico do colapso dela começa quando os pensamentos intrusivos chegam. Eva cogita jogar o bebê pela janela, mas todo mundo tem pensamentos intrusivos e a maioria resiste (eu acho), então, graças a Deus, ela não faz isso. Só que o bebê continua chorando e Eva simplesmente não consegue dar conta.
O primeiro apagão acontece: Eva dorme com o bebê no colo e quando acorda, não sabe onde está o bebê nem quem a levou para o sofá. Horas se passaram e ela não faz ideia do que aconteceu. Quando Vicente chega, vê um hematoma em Lucas e a primeira coisa que todo mundo pensa é: onde estava a mãe dessa criança? Por que não estava por perto pra proteger o filho? Cadê a mãe enquanto o filho estava se machucando?
Ninguém nunca pergunta onde estava o pai. Impressionante. Ainda que velado, é nítido o fato de que Vicente culpa Eva desde o início. Ele tenta disfarçar, mas né. Não dá. Eva se culpa porque dormiu e não viu o que aconteceu, e também não ajuda o fato de a babá eletrônica ter quebrado.
Mas em nenhum momento alguém pôs a mão no ombro dela e falou “calma, você tá cansada, já tá sobrecarregada demais, vamos te ajudar”. Ninguém ficou com o bebê pra ela poder tomar banho com calma.
Um caso de racismo na alta sociedade
Como ninguém sabe quem foi que machucou Lucas, eles começam a avaliar as possibilidades. Se não foi Vicente e não foi Eva, então foi a empregada. A coitada da Isabela. Uma mulher negra que de repente é acusada de agressão contra um bebê. Claro que Eva é acusada de racismo, e olha, sinceramente, por que o primeiro suspeito é sempre o funcionário? Não faz sentido nenhum isso.
Isabela se demite, é óbvio, certíssima ela. E aí todo mundo acha que ninguém mais vai ser machucado porque a agressora foi embora. Só que Eva tem mais um de seus apagões em que não sabe o que rolou e, nesse meio tempo, as meninas aparecem machucadas também.
De novo, Vicente culpa Eva. Por que Eva não cuidou das meninas? Por que Eva não viu os machucados antes? Por que Eva não estava supervisionando as duas? Tudo é culpa de Eva. Pelo menos Vicente teve a decência de não acusá-la diretamente, levou em consideração outras possibilidades. Eles vão à escola e na escola as meninas confessam que foi Eva.
Nesse ponto, até Eva começa a duvidar de si mesma. Afinal, tem os apagões, né. Ela se pergunta se fez mesmo tudo aquilo e só não se lembra. As dúvidas se intensificam quando vaza a informação de que Eva apanhava da mãe e que a mãe havia cometido suicídio. Todo mundo tende a pensar que essas coisas são genéticas, que a violência passa de mãe pra filho como uma doença silenciosa, e não demora para que até Eva pense que está se tornando a própria mãe.
Uma expulsão e a tentativa de achar um culpado
Admito que fiquei com muita raiva de Vicente quando ele expulsa Eva de casa e com mais raiva ainda de Eva quando ela aceita ir e deixar o bebê pra trás. Tenha voz, mulher. Fala com firmeza que não foi você e que você não vai ficar longe do bebê. E que se tiver que ir, o bebê vai junto. Você é a mãe. Pelo amor de Deus.
Mas não estamos aqui pra julgar a Eva (disse eu, depois de julgar muito). Eva volta pra casa da mãe e mente vazia, oficina do diabo. Lá sozinha, ela cria várias teorias pra provar que quem bateu nas meninas não foi ela. Primeiro ela pensa que a culpada é Alice, a verdadeira mãe das gêmeas (Eva é a madrasta) – que está morta. Depois ela pensa na própria mãe, a que batia nela – que também está morta. Nesse ponto a gente percebe que Eva de fato enlouqueceu.
Mas eu devo dizer que a próxima teoria dela faz muito sentido (bom, pelo menos ela tem fortes argumentos). Investigando na internet e analisando fotos antigas, ela põe na cabeça que quem está batendo nas meninas é Vicente, e pior, que Vicente abusa das meninas.
Faz sentido? Faz. Afinal, as meninas têm 10 anos e ainda tomam banho com o pai. Isso é, no mínimo, estranho. Só que quando Eva instala as câmeras escondidas no apartamento, não consegue prova nenhuma dos abusos, o que coloca a teoria em xeque.
Aqui já estamos quase no fim do livro. Eva está tentando provar que Vicente é um pedófilo e consegue seduzi-lo para voltar ao apartamento e roubar o celular e computador dele. Não encontra absolutamente nada no celular dele e dorme no sofá. Enquanto ela dorme, Lucas (o bebê) aparece com o braço quebrado numa poça de sangue no chão.
C******. As crianças só aparecem machucadas quando Eva está por perto. E pior: junto com os apagões dela. Não dá nem pra defender a Eva desse jeito.
Todo mundo vai pro hospital e é aquele furdúncio todo. Eva ainda está pensando que o culpado é Vicente e leva as meninas para um lugar seguro: a casa da mãe dela. Ela vai buscar as provas nas câmeras e vê uma coisa que ninguém poderia prever, exceto quem, como eu, viu as últimas páginas antes de começar a ler.
Uma pequena psicopata
Veja bem, eu sou uma pessoa ansiosa. Gosto de saber no que estou me metendo. Todo livro que compro, leio o fim antes de começar a leitura. Um hábito estranho? Sim. Desse jeito não tenho surpresas? Exatamente. Tem gente que é esquisita mesmo, ué.
E eu já sabia quem era o culpado desde o início. Mas claro que, como uma boa escritora, eu li o livro me colocando no lugar de um leitor que não sabe de nada. E parabéns, Raphael Montes, o leitor que eu fingi ser não conseguiu descobrir nada até que Eva viu nas câmeras que a culpada era Angela, uma das gêmeas. Isso quer dizer que eu não me decepcionei, você escreve absurdamente bem. Se um leitor não descobre o segredo do livro até que o segredo seja de fato revelado, é porque o livro é bom. Raphael Montes, um dia quero ser que nem você.
“Uma família feliz”, livro de Raphael Montes, vai receber cinco estrelinhas na minha lista de leitura, e essa palavra em específico me faz pensar em Angela. A gêmea má, uma pequena psicopata, que por causa da sua adoração pelo pai, decidiu eliminar todos os outros membros da família para que os dois pudessem ficar sozinhos.
Estrelinha. Aí vem o spoiler mais chocante: quando Eva tenta reanimar Sara, assassinada por Angela, Angela diz que é inútil, Sara não vai escutá-la, pois virou uma es-tre-li-nha.
É horripilante ler isso. E ainda mais horripilante contar pra alguém o que foi lido. Ainda penso na decisão final da Eva. Um último sacrifício, ela disse. Na minha cabeça teriam outros desfechos.
Mas é isso que eu gosto nos livros. O personagem nunca faz o que você quer. Ele tem vida, toma suas próprias decisões. Às vezes o personagem não faz nem o que o próprio escritor quer que ele faça, e aí a gente escreve e fica pensando, não, não era isso que eu tinha planejado, mas não adianta, ele já fez, já foi escrito.
Personagens têm vida e só um escritor entende isso. Então, Raphael, de escritor pra escritor, obrigada por isso. Eu fiquei inconformada com a última atitude de Eva, e não sei se era exatamente isso que você queria que ela fizesse, mas apesar de ter ficado chocada, eu gostei.
Foi a atitude de uma mãe desesperada, a última tentativa de salvar o filho. O fato de que o livro acaba assim, do nada, junto com o impacto contra o caminhão, não foi nada além de perfeito, porque é assim que acaba a vida. Subitamente. O resto, o que vem depois, o epílogo, aí já é tarefa do leitor imaginar.