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  • Foto do escritorKatherine Carvalho

Uma análise da música "Construção" de Chico Buarque

Quem nunca inventou rimas para essa famosa música do Chico Buarque não viveu a vida plenamente ainda (inclusive tem uma página no Facebook dedicada exclusivamente a isso, você pode acessar aqui).


A verdade é que na primeira vez que a gente escuta essa música, é normal ficar um pouco confuso com as rimas que sempre terminam em proparoxítonas e, posteriormente, com o embaralhamento que o cantor faz, trocando as rimas de lugar. É normal você não prestar atenção na letra logo de cara — e é normal você, assim como eu, precisar escutar mais de uma vez para entender realmente o que a música quer dizer.


Mas vale lembrar que Chico Buarque foi um dos rostos da resistência durante o período da Ditadura Militar no Brasil, e que nenhuma música sua foi escrita à toa (lê-se “Cálice”). É importante que você não se esqueça disso, porque dias escuros como esses deixam marcas permanentes, e se você olhar com atenção, verá essas marcas em todo lugar — em todos os rostos e, principalmente, em todas as artes. Espero que você goste desta análise.


Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido


Os primeiros quatro versos sugerem uma despedida. O tom melancólico é óbvio quando o eu-lírico ama e beija sua mulher e filhos como se fosse a última vez. Atravessar a rua com seu passo tímido talvez seja sua forma de sair de casa despercebido, sem chamar atenção, para fazer algo escondido.


Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima


Na segunda estrofe, temos um vislumbre da profissão do eu-lírico: ele trabalha no setor da construção civil, talvez como mestre de obras, pedreiro ou servente, já que a música deixa claro que uma de suas tarefas é “erguer paredes sólidas”. Também podemos apreender que ele saiu sorrateiramente de casa para se refugiar no edifício ainda em fase de construção, talvez porque ali possa chorar livremente (como sugere a passagem “seus olhos embotados de cimento e lágrima”).


Sentou pra descansar como se fosse sábado

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dançou e gargalhou como se ouvisse música


Para mim, a estrofe seguinte reforça a sensação de desamparo. Mas ao mesmo tempo em que sinto a tristeza dele, sinto-me também imersa num governo autoritário — por que deveríamos descansar somente aos sábados? Parece que alguém nos obriga a ser produtivos de segunda a sexta, e que apenas aos sábados nos é permitido um momento de respiro. A frase “comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe” também me intriga — pode ser impressão minha, mas a meu ver, o eu-lírico não costuma ter muita comida à mesa, porque considera um simples prato de arroz e feijão como digno de um príncipe. Afinal, para quem não tem nada, o básico já é muito. A risada mencionada no fim da estrofe me soa amarga e sarcástica, como a de quem ri sem sentir humor nenhum.


E tropeçou no céu como se fosse um bêbado

E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego


Essa estrofe gera muitas controvérsias: que o eu-lírico caiu da construção e morreu, todo mundo sabe. Mas ele tropeçou mesmo, sem querer, ou se jogou? Na minha opinião, ele se jogou por vontade própria — isso explicaria toda a tristeza até aqui e a sensação de despedida no início da música. Essa era a intenção dele desde o “beijou sua mulher como se fosse a última”.


Há, ainda, uma observação a ser feita sobre essa frase de encerramento: “morreu na contramão, atrapalhando o tráfego”, que dá a entender que a morte de um mero trabalhador de obra não é nada mais do que um empecilho para o resto da população a caminho de seus próprios trabalhos. Como um obstáculo no meio do caminho, um objeto sem valor que obriga as pessoas a se desviarem. E embora essa música seja antiga, essa parte em específico ainda me faz lembrar daquele acontecimento no Carrefour, quando um homem morreu e esconderam seu corpo com guarda-sóis dentro do mercado, para que o resto dos colaboradores continuassem trabalhando normalmente.


Esse é o último verso da primeira parte da música, e marca o fim: tanto da vida do homem que se jogou (ou caiu, para quem quer enxergar assim) quanto do ciclo onde as rimas ainda faziam sentido — porque, a partir de agora, o cantor começa o intrincado processo de embaralhamento que leva o ouvinte à loucura.


Amou daquela vez como se fosse o último

Beijou sua mulher como se fosse a única

E cada filho seu como se fosse o pródigo

E atravessou a rua com seu passo bêbado


Subiu a construção como se fosse sólido

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas

Tijolo com tijolo num desenho lógico

Seus olhos embotados de cimento e tráfego


Sentou pra descansar como se fosse um príncipe

Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo

Bebeu e soluçou como se fosse máquina

Dançou e gargalhou como se fosse o próximo


E tropeçou no céu como se ouvisse música

E flutuou no ar como se fosse sábado

E se acabou no chão feito um pacote tímido

Agonizou no meio do passeio náufrago

Morreu na contramão atrapalhando o público


Amou daquela vez como se fosse máquina

Beijou sua mulher como se fosse lógico

Ergueu no patamar quatro paredes flácidas

Sentou pra descansar como se fosse um pássaro

E flutuou no ar como se fosse um príncipe

E se acabou no chão feito um pacote bêbado

Morreu na contramão atrapalhando o sábado


Há muitas teorias para explicar esse “embaralhamento”, mas a minha (por isso estou fazendo esta análise) é que a vida humana é tão mecânica e robotizada que fazemos tudo no automático — beijamos nossos cônjuges antes de sair de casa, vamos trabalhar, almoçamos, voltamos para casa, jantamos, vamos dormir, acordamos, e tudo recomeça, de novo e de novo, sem pausa, sem fim… A engrenagem toda parece funcionar bem, até que uma a uma, as peças começam a ruir e toda a máquina entra em colapso. Esse colapso leva o eu-lírico a sair sorrateiramente de casa depois de dar um último beijo na esposa; esse colapso leva o eu-lírico a se jogar da construção. Mas a vida humana continua mecânica e robotizada como sempre, independentemente de quem caiu da construção ou de quem morreu na contramão atrapalhando o tráfego. Por isso a morte é encarada como uma mera inconveniência, um atraso cotidiano, para que a vida humana possa seguir seu fluxo mecânico e robotizado. Assim, conforme a engrenagem capenga continua girando, as rimas se embaralham, porque a vida é mesmo uma bagunça que ninguém entende, só vai seguindo a correnteza, porque é impossível nadar contra ela… até que a próxima peça enferruje e faça a engrenagem toda entrar em colapso mais uma vez.


Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir

A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir

Por me deixar respirar, por me deixar existir

Deus lhe pague


O cantor, no entanto, parece se revoltar mais para o fim da música. O ritmo da canção também muda e o tom de voz se altera. Antes um narrador impessoal, agora o cantor parece indignado com o rumo da história e demonstra sua insatisfação através dos versos. Vê-se que ele começa a agradecer por coisas miseráveis que a maioria de nós nem valoriza no dia a dia porque são tão simplórias que ninguém lembra delas: o pão pra comer, o chão pra dormir, ora, isso é o básico, não é? Não é o que todos deveriam ter? Por que é que alguém se daria ao trabalho de agradecer por isso? Como se receber migalhas fosse um grandioso gesto de caridade — quando, na verdade, devia ser apenas o básico para qualquer um.


Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir

Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir

Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair

Deus lhe pague


Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir

E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir

E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir

Deus lhe pague


E é então que começa o sarcasmo. Não mais agradecer pelo que seria sua obrigação me fornecer, mas agradecer por coisas que nunca deveriam acontecer. E, por fim, agradecer pela morte depois de uma vida inteira de cansaço e exploração, por finalmente poder ter a paz derradeira que vai nos redimir. Deus lhe pague.

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Por Katherine Carvalho

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