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  • Foto do escritorKatherine Carvalho

Uma análise da música "Faroeste Caboclo"

Uma música de 9 minutos e 7 segundos merece uma análise à altura, e assim como Renato Russo não conseguiu resumir a história de João de Santo Cristo, eu também não consegui escrever uma análise pequena, então queiram me perdoar pelo tamanho deste texto.


Não tinha medo o tal João de Santo Cristo

Era o que todos diziam quando ele se perdeu

Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda

Só pra sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu


Primeira imagem que o ouvinte tem de João, e as características do personagem surgem em nossa mente como consequência: automaticamente imaginamos um menino pobre, de família humilde, tanto pelos elementos verbais “marasmo” e “fazenda” quanto por nossa própria construção social de que quem “se perde” geralmente (e infelizmente) costuma ser uma pessoa com poucos recursos financeiros.


Quando criança só pensava em ser bandido

Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu


Vítima da sociedade, coisa que ninguém quer ouvir hoje em dia: João perdeu o pai muito cedo para o tiro de um soldado, o que fez com que ele enxergasse o governo como vilão, pois lhe roubou o pai e o tornou órfão — consequentemente, pensava em ser bandido para lutar contra quem lhe tirou sua família (e estaria errado em pensar assim, sendo só uma criança?).

Era o terror da sertania onde morava

E na escola até o professor com ele aprendeu

Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro

Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar


Descrença em religião ou em qualquer outra entidade superior que poderia vir a salvá-lo — desde sempre, foi ele por ele, e ele nunca esperou ser resgatado por ninguém. João não respeitava autoridades e não acreditava que existia um propósito maior em sua vida, também tinha raiva da crença alheia, aproveitando-se do dinheiro das velhinhas que iam à igreja.


Sentia mesmo que era mesmo diferente

Sentia que aquilo ali não era o seu lugar

Ele queria sair para ver o mar

E as coisas que ele via na televisão


Sentimento de não pertencimento: João não se encaixava, queria ter a vida das pessoas ricas que via na televisão — ao mesmo tempo sabia que nunca chegaria a tal ponto, pois o abismo que os separava era grande demais para atravessar, e isso só fazia crescer o ódio em seu coração.


Juntou dinheiro para poder viajar

De escolha própria, escolheu a solidão

Comia todas as menininhas da cidade

De tanto brincar de médico, aos doze era professor


Solidão: a melhor companhia para João. Buscava alívio em prazeres momentâneos, usava sexo para suprir o vazio desde jovem. Não teve acesso à educação, cultura ou arte que lhe servissem de escape.


Aos quinze, foi mandado pro reformatório

Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror


Primeiro contato com a violência, elemento determinante para o homem que ele viria a ser no futuro. Grande parte do que vivemos na infância perdura durante a vida adulta, e os traumas que adquirimos cedo nos perturbam eternamente. João, ao conhecer a violência, jamais conseguiu se livrar dela.


Não entendia como a vida funcionava

Discriminação por causa da sua classe e sua cor


Racismo: há quem diga que não existe, mas João, ainda criança, percebeu que era discriminado, tratado diferente, violentado, por causa da cor da sua pele. Mas para quem não entende a história e as dores de João, essa música nunca vai fazer sentido.


Ficou cansado de tentar achar resposta

E comprou uma passagem, foi direto a Salvador


Fuga: quando não se pode lutar ou quando estamos cansados, a gente foge e busca um recomeço. O recomeço de João poderia estar em Salvador, mas não foi lá que ele ficou.


E lá chegando foi tomar um cafézinho

E encontrou um boiadeiro, com quem foi falar

E o boiadeiro tinha uma passagem e ia perder a viagem

Mas João foi lhe salvar


E não era João que precisava de salvação?


Dizia ele "estou indo pra Brasília

Neste país lugar melhor não há"


Ledo engano… O inferno está vazio e todos os demônios estão em Brasília.


"Tô precisando visitar a minha filha

Eu fico aqui e você vai no meu lugar"

E João aceitou sua proposta

E num ônibus entrou no Planalto Central


O tão esperado recomeço de João. Só que no lugar errado.


Ele ficou bestificado com a cidade

Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal

Meu Deus, mas que cidade linda


Um menino do interior encantado com a cidade grande. Para quem raramente via beleza na infância, aquilo tudo facilmente lhe subiria à cabeça se João não tomasse cuidado. Coisas bonitas e luzes de Natal podem ser hipnotizantes para quem não está acostumado a ser bem tratado, e ninguém poderia culpar João por ficar enfeitiçado. Quem nunca foi enfeitiçado por algo belo e sedutor, que atire a primeira pedra.


No Ano Novo eu começo a trabalhar

Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro

Ganhava cem mil por mês em Taguatinga


A música poderia terminar aqui, e estaria tudo certo. João planejava ser um trabalhador honesto, mas, de novo, estava no lugar errado, e na hora errada — e por mais que João quisesse ser honesto, nem sempre isso é suficiente. Cem mil por mês parece ser bastante dinheiro, mas devemos lembrar que, na época em que essa música se passa, a moeda brasileira era outra, e valia muito menos.


Na sexta-feira ia pra zona da cidade

Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador


Ele não consegue se livrar dos vícios carnais e dos alívios momentâneos que prazeres mundanos trazem.

E conhecia muita gente interessante

Até um neto bastardo do seu bisavô

Um peruano que vivia na Bolívia

E muitas coisas trazia de lá

Seu nome era Pablo e ele dizia

Que um negócio ele ia começar


Isso não parecia uma boa ideia. Pablo era um amigo, mas os amigos nem sempre nos dão bons conselhos ou nos levam para bons caminhos, e João, que sempre fora sozinho e aprendera a não contar com ninguém, de repente se viu perto de alguém com quem podia conversar. Isso também é perigoso e também sobe à cabeça de quem sempre foi carente de afeto.


E o Santo Cristo até a morte trabalhava

Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar


Miséria: até hoje, os trabalhadores não recebem salários adequados. Pagar as contas, comprar arroz e feijão: às vezes não sobra dinheiro pra mais nada, e tem dias que só dá pra comprar o arroz. Tem dias que não dá pra comprar comida nenhuma, e olhe lá.


E ouvia às sete horas o noticiário

Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar


O seu ministro nunca ajudou ninguém, só ajuda a si mesmo, e os ministros que vieram e virão depois dele também. João estava por conta própria, e eu e você também estamos. João só percebeu isso mais cedo que a maioria.


Mas ele não queria mais conversa

E decidiu que, como Pablo, ele ia se virar

Elaborou mais uma vez seu plano santo

E sem ser crucificado, a plantação foi começar


Quem pode culpar João por querer se virar? O governo não o ajudou quando era criança, não o ajudou quando adulto, não lhe pagou um salário decente, quem pode culpar João? A plantação a gente sabe do que é, e se o certo deixa a gente na miséria, sem feijão nem arroz, e o errado dá dinheiro, põe comida na nossa mesa, qual caminho você acha que a gente vai seguir?


Logo, logo os maluco da cidade souberam da novidade

"Tem bagulho bom aí!"

E João de Santo Cristo ficou rico

E acabou com todos os traficantes dali


Uma vez que se entra, nunca se sai — o destino de João estava selado. Ele se envolveu com traficantes e nunca mais haveria um momento em que ele não mais se envolveria. Parece que você já ouviu essa história antes, não? Isso se repete várias e várias vezes todos os dias, histórias idênticas à de João. Não foi à toa que Renato Russo a transformou em música.


Fez amigos, frequentava a Asa Norte

E ia pra festa de rock, pra se libertar

Mas de repente, sob uma má influência dos boyzinho da cidade

Começou a roubar


Amigos que nos levam a caminhos ruins, e nós que somos fracos demais para resistir à correnteza. Todos nós já estivemos em circunstâncias parecidas, em diferentes níveis, mas qualquer um pode se reconhecer, pelo menos um pouquinho, na realidade de João de Santo Cristo


Já no primeiro roubo ele dançou

E pro inferno ele foi pela primeira vez

Violência e estupro do seu corpo

Vocês vão ver, eu vou pegar vocês


Tudo que havia — se é que havia — de bom dentro de João sumiu depois de sua primeira passagem pela prisão, e aqui nos confrontamos diretamente com a brutal realidade do sistema prisional brasileiro. Ninguém diz que João era inocente, mas devemos concordar que um conjunto de fatores o levaram até ali, e o governo tem uma grande parcela de responsabilidade nisso.


Agora o Santo Cristo era bandido

Destemido e temido no Distrito Federal

Não tinha nenhum medo de polícia

Capitão ou traficante, playboy ou general


João não tinha medo daqueles que mataram seu pai: o governo, a polícia, os soldados, continuavam sendo os vilões — nada tinha mudado. O ódio só crescia.


Foi quando conheceu uma menina

E de todos os seus pecados ele se arrependeu


O amor como redenção. Na verdade, se pararmos pra pensar bem, isso sempre vai ser a solução.


Maria Lúcia era uma menina linda

E o coração dele pra ela o Santo Cristo prometeu

Ele dizia que queria se casar

E carpinteiro ele voltou a ser

Maria Lúcia, pra sempre vou te amar

E um filho com você eu quero ter


De novo, a música poderia ter acabado aí, e tudo terminaria bem. Porém, mesmo que tivesse acabado aí, você acha que estaria tudo bem para João? Recém-saído da prisão, negro e pobre… nunca esteve tudo bem para ele, muito menos agora. Mas não acabou aí, então estava tudo pior ainda.


O tempo passa e um dia vem na porta

Um senhor de alta classe com dinheiro na mão


Os verdadeiros bandidos são ricos.


E ele faz uma proposta indecorosa

E diz que espera uma resposta, uma resposta do João

Não boto bomba em banca de jornal

Nem em colégio de criança isso eu não faço não


João era bandido, ele se autodenominava assim, mas não se rebaixou ao nível do homem de alta classe com dinheiro na mão, que comprava criminosos para pôr bomba em banca de jornal e em colégio de criança. Para João, havia um limite do que um bandido podia ou não fazer, e isso que o homem estava propondo nunca esteve em cogitação. Quem era, afinal, o bandido na história?


E não protejo general de dez estrelas

Que fica atrás da mesa com o cu na mão


Comprando o futuro de jovens que não tinham futuro, que organizam guerras sem participar delas, que cometem crimes através das mãos de outras pessoas, que mandam, mas não executam, que pagam, mas ninguém fica sabendo.


E é melhor o senhor sair da minha casa

Nunca brinque com um Peixes de ascendente Escorpião


João era vingativo: Peixes, o signo passional e movido pela emoção, e Escorpião, o signo da vingança e da intensidade.


Mas antes de sair, com ódio no olhar, o velho disse

"Você perdeu sua vida, meu irmão"

Você perdeu a sua vida, meu irmão

Você perdeu a sua vida, meu irmão

Essas palavras vão entrar no coração

Eu vou sofrer as consequências como um cão


Momento em que João aceita o seu destino. Não havia para onde correr e João sabia disso.


Não é que o Santo Cristo estava certo

Seu futuro era incerto e ele não foi trabalhar

Se embebedou e no meio da bebedeira

Descobriu que tinha outro trabalhando em seu lugar


Facilmente substituível, João percebeu que existiam outros 30 que poderiam rapidamente tomar o seu lugar ao menor sinal de fraquejo, e essa percepção dura pela qual todos passamos em algum momento da vida corroeu João de tal forma que, em seguida, ele decidiu voltar para o fácil em vez de continuar no certo.


Falou com Pablo que queria um parceiro

E também tinha dinheiro e queria se armar

Pablo trazia o contrabando da Bolívia

E Santo Cristo revendia em Planaltina


O crime é uma reação em cadeia: você se envolve numa coisa, e daqui dois dias, já está envolvido em outra, e dessa trama, quase nunca se sai vivo. João já tinha decidido se meter até as orelhas, então por que não se arriscar em águas mais perigosas?


Mas acontece que um tal de Jeremias

Traficante de renome, apareceu por lá

Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo

E decidiu que, com João, ele ia acabar


Há quem enxergue Jeremias como o antagonista, o vilão da música, mas pare e pense: será que realmente é ele que devemos odiar nessa história toda? Não há um pouco mais por trás disso do que somente Jeremias?


Mas Pablo trouxe uma Winchester-22

E Santo Cristo já sabia atirar

E decidiu usar a arma só depois

Que Jeremias começasse a brigar

Jeremias, maconheiro sem vergonha

Organizou a Rockonha e fez todo mundo dançar

Desvirginava mocinhas inocentes

Se dizia que era crente mas não sabia rezar


Alguma semelhança com João de Santo Cristo não é mera coincidência. De novo, as histórias se repetem.


E Santo Cristo há muito não ia pra casa

E a saudade começou a apertar

Eu vou-me embora, eu vou ver Maria Lúcia

Já tá em tempo de a gente se casar


Depois de tudo, João ainda tinha vontade de ser diferente e de ter uma vida normal. Mas àquela altura do campeonato, já não era mais possível, e ele, no fundo, sabia disso. E nós também.

Chegando em casa, então, ele chorou

E pro inferno ele foi pela segunda vez


Nada daquilo era mais uma surpresa.


Com Maria Lúcia, Jeremias se casou

E um filho nela ele fez

Santo Cristo era só ódio por dentro


O ápice do ódio, o clímax da história, a traição de Maria Lúcia foi a gota d’água para João decidir acabar com tudo — para o sim ou para o não, aquilo terminaria, e isso por si só, já era um alívio.


E então o Jeremias pra um duelo ele chamou

Amanhã às duas horas na Ceilândia

Em frente ao Lote 14, é pra lá que eu vou

E você pode escolher as suas armas

Que eu acabo mesmo com você, seu porco traidor

E mato também Maria Lúcia

Aquela menina falsa pra quem jurei o meu amor


Agora, quem diz isso? João ou Jeremias? Acredito que foi proposital essa confusão na letra de Renato Russo, pois ele queria que tivéssemos a dúvida e queria que todo mundo confundisse os personagens pelo menos por um momento. De novo, a semelhança entre João e Jeremias.


E o Santo Cristo não sabia o que fazer

Quando viu o repórter da televisão

Que deu notícia do duelo na TV

Dizendo a hora e o local e a razão

No sábado então, às duas horas

Todo o povo sem demora foi lá só para assistir


Sociedade do espetáculo: nada melhor para fazer num sábado à tarde do que assistir a um duelo onde, certamente, alguém morreria. Mudamos bastante desde os tempos dos gladiadores na Roma Antiga? Acredito que não.


Um homem que atirava pelas costas

E acertou o Santo Cristo, começou a sorrir

Sentindo o sangue na garganta

João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir

E olhou pro sorveteiro e pras câmeras e

A gente da TV que filmava tudo ali

E se lembrou de quando era uma criança

E de tudo o que vivera até ali

E decidiu entrar de vez naquela dança

Se a Via Crucis virou circo, estou aqui


E nisso o sol cegou seus olhos

E então Maria Lúcia ele reconheceu

Ela trazia a Winchester-22

A arma que seu primo Pablo lhe deu


Jeremias, eu sou homem, coisa que você não é

E não atiro pelas costas, não

Olha pra cá, filho da puta, sem vergonha

Dá uma olhada no meu sangue e vem sentir o teu perdão


E Santo Cristo, com a Winchester-22

Deu cinco tiros no bandido traidor

Maria Lúcia se arrependeu depois

E morreu junto com João, seu protetor


E o povo declarava que João de Santo Cristo

Era santo porque sabia morrer

E a alta burguesia da cidade

Não acreditou na história que eles viram na TV

E João não conseguiu o que queria

Quando veio pra Brasília, com o diabo ter

Ele queria era falar pro Presidente

Pra ajudar toda essa gente que só faz

Sofrer


A escolha dos elementos bíblicos e das referências religiosas não são por acaso — Renato Russo sabia muito bem o que estava fazendo quando escreveu “Faroeste Caboclo” e só não vê quem não quer. João é uma óbvia alusão a Jesus Cristo, que morreu sob as chagas dos homens que ele aprendeu a perdoar, depois de ter sofrido as dores do mundo, e a Via Crucis, o caminho que Jesus percorre até chegar ao Calvário, é nada mais, nada menos, do que o espetáculo sangrento a que a população assiste com avidez: o duelo final entre João e Jeremias. Ninguém faz nada para ajudar, assim como ninguém moveu um dedo por Jesus em seus momentos finais de agonia — mas depois de morto, todos o santificaram (por que não o fizeram em vida?). A devastadora verdade é que, assim como Pôncio Pilatos, o algoz de Jesus, nós continuamos lavando as mãos, todos os dias e sem nenhum peso na consciência, para muitos Joãos e Jeremias que, no início, bem no início, não tinham culpa de nada.

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Por Katherine Carvalho

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