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  • Foto do escritorKatherine Carvalho

Uma análise da música "Na sua estante" da Pitty

Eu tinha um professor na escola que me chamava de “Pitty”, e até hoje não sei exatamente por quê. Sempre gostei da Pitty, mas das músicas dela, nem tanto. A verdade é que eu nunca parei pra pensar sobre elas, e agora que uma pessoa muito especial sugeriu que eu analisasse “Na sua estante”, eu percebi que devia ter feito isso mais cedo! Quanto tempo desperdicei ignorando uma canção cujo significado é tão profundo e, de certa forma, tão dolorido.


Então, aqui está. Espero que você goste desta análise:


Te vejo errando e isso não é pecado

Exceto quando faz outra pessoa sangrar

Te vejo sonhando e isso dá medo

Perdido num mundo que não dá pra entrar


A primeira estrofe dá a entender que o eu-lírico está analisando o comportamento de outra pessoa. O ar de ressentimento não me passa despercebido, porque, realmente, ver alguém cometendo erros não nos incomoda, a menos que o erro desse alguém nos afete e nos faça sangrar. E aí, feridos e magoados, a gente vê o agressor sair ileso e tem medo do que ele pode estar planejando fazer em seguida, com suas próximas vítimas indefesas.


Você está saindo da minha vida

E parece que vai demorar

Se não souber voltar ao menos mande notícia

Cê acha que eu sou louca

Mas tudo vai se encaixar


Abandono. O eu-lírico exala um ar de quem foi abandonado, o famoso “levei um pé na bunda”, na segunda estrofe que me é muito familiar. Quando ele pede que a pessoa mande notícias, fica claro, pelo menos para mim, que essa pessoa não quer e não pretende voltar, e que deixou o eu-lírico para trás por livre e espontânea vontade. Vem à minha mente o típico relacionamento tóxico entre um homem abusivo e uma mulher emocionalmente dependente que acha que não conseguirá sobreviver ao ser abandonada. E da mesma forma, os dois últimos versos também são familiares, afinal, todos nós já presenciamos ou já ouvimos falar de casos onde a frase “você é louca” é mais frequente do que um “eu te amo”.


Tô aproveitando cada segundo

Antes que isso aqui vire uma tragédia


O prenúncio. Normalmente a gente sente quando algo ruim está pra acontecer, principalmente se você é uma pessoa intuitiva como eu. Quando sei que uma desgraça se aproxima, eu procuro aproveitar todos os instantes, cada pequeno momento de felicidade, porque sei que em breve eles poderão me ser roubados, assim como o eu-lírico está fazendo nessa estrofe. Talvez o eu-lírico saiba que está prestes a ser abandonado, e esteja lutando para desfrutar cada segundo que resta com seu amado.


E não adianta nem me procurar

Em outros timbres, outros risos

Eu estava aqui o tempo todo

Só você não viu


E não adianta nem me procurar

Em outros timbres, outros risos

Eu estava aqui o tempo todo

Só você não viu


Há uma guinada drástica na música (pelo menos na minha visão) quando surge essa estrofe. Porque me parece que a mulher, outrora dependente emocional de um homem abusivo, finalmente se libertou das amarras desse relacionamento tóxico e conseguiu superar seus traumas a ponto de não voltar para o que a destruiu. Isso fica claro pra mim na sentença "não adianta nem me procurar", porque o padrão de comportamento é sempre o mesmo: o homem abusivo faz a mulher de gato e sapato porque sabe que ela está subjugada. Mas a partir do momento que a mulher toma consciência da sua situação e decide que não vai mais passar por aquilo, ela se liberta e não olha mais pra trás. O homem então fica perdido, confuso, atordoado, porque, afinal, quem é que ele vai torturar agora? É muito comum que o homem então passe a correr atrás da mulher que foi embora, porque a quer de volta, porque não sabe viver sem ela, porque a ama, e todo o discurso que eles sempre têm na ponta da língua. Mas a mulher já não é a mesma que ele conhecia: não vai adiantar ele procurá-la em outros timbres e outros risos, porque, na verdade, ela sempre esteve lá, só ele que não viu.


Você tá sempre indo e vindo, tudo bem

Dessa vez eu já vesti minha armadura

E mesmo que nada funcione

Eu estarei de pé, de queixo erguido


Mais um sinal dos relacionamentos tóxicos: casais que não estão numa relação saudável costumam terminar e reatar diversas vezes, sempre com a desculpa de que "agora vai ser diferente", e a gente sabe que (quase) nunca é. O eu-lírico observa com certa frieza que o amado está sempre indo e vindo, fazendo alusão aos sucessivos términos, mas que agora ela está preparada: ela vestiu sua armadura e estará de pé, de queixo erguido, e ainda que ele implore para ela o aceitar de volta, dessa vez ela não vai ceder.


Depois você me vê vermelha e acha graça

Mas eu não ficaria bem na sua estante


Essa estrofe aqui me deixa ligeiramente nauseada. Claro que a cantora pode estar se referindo a um rosto "vermelho" devido à vergonha, ao nervosismo ou à excitação, mas convenhamos, em relacionamentos tóxicos muitas vezes um rosto vermelho significa um hematoma depois de uma agressão. Aqui vemos também a única menção ao título da canção na música inteira, e na minha percepção, tudo faz sentido agora: o homem não a amava de fato, apenas a tinha como um objeto submisso, um troféu em sua estante.


Tô aproveitando cada segundo

Antes que isso aqui vire uma tragédia


Novamente uma estrofe que me preocupa um pouco. Essa "tragédia" já foi mencionada antes, mas só agora, com o desenrolar da letra, a palavra começa a tomar outro significado pra mim. Todos os dias vemos casos de feminicídio na TV e nos jornais e nas redes sociais e todas nós conhecemos ou convivemos (ou já fomos) mulheres que correram perigo nas mãos de um homem, e todas nós, sem exceção, já sentimos medo de um homem e já tememos pela nossa vida e pela nossa integridade física. Então quando eu leio a palavra "tragédia" pela segunda vez nesse texto, ela já não significa a mesma coisa pra mim. O eu-lírico está, sim, tentando aproveitar esses últimos instantes, não porque vai ser abandonada em breve, e sim porque pode não estar mais aqui amanhã.


E não adianta nem me procurar

Em outros timbres, outros risos

Eu estava aqui o tempo todo

Só você não viu


E não adianta nem me procurar

Em outros timbres, outros risos

Eu estava aqui o tempo todo

Só você não viu


Só por hoje, não quero mais te ver

Só por hoje, não vou tomar minha dose de você

Cansei de chorar feridas que não se fecham, não se curam (não)

E essa abstinência uma hora vai passar


"Só por hoje", o eu-lirico diz. Parece que, de algum modo, se afastar de quem nos fere é como largar o vício da bebida (o lema dos alcoólicos anônimos não é mais ou menos isso? Um dia de cada vez?), como se a qualquer momento ela pudesse ter uma recaída. A alusão ao vício também é reforçada nas sentenças "não vou tomar minha dose de você" e "essa abstinência vai passar", porque às vezes, quem está preso num relacionamento tóxico se sente tão refém do parceiro abusivo quanto um alcoólatra se sente refém da bebida. Mas tal qual o alcoólatra deseja desesperadamente se livrar das amarras do vício, aquele que sofre dentro de um relacionamento tóxico também anseia por parar de chorar por feridas que não se fecham e não se curam, e pedem força a Deus, ou a quem quer que esteja ouvindo, para que não voltem mais uma vez para aquele que a feriu.

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Por Katherine Carvalho

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