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  • Foto do escritorKatherine Carvalho

Uma análise da música "O'Children" de Nick Cave and the Bad Seeds

A maioria das pessoas com certeza conhece essa música porque é fã de Harry Potter. A direção do penúltimo filme inseriu essa canção na trilha sonora em uma das cenas mais emocionantes da saga: a dança de Harry e Hermione logo depois que Rony abandona o trio. Acho que a carga dramática, a tristeza e a tensão existentes na cena contribuíram para tornar a música ainda mais linda e intensa. E, de certa forma, foi só assistindo ao filme que eu consegui finalmente dar um significado para a música “O’Children”, de Nick Cave and the Bad Seeds.


Porque assim como Harry Potter não é só um filme sobre bruxos e magia, essa música também não é um simples conjunto de frases aleatórias e narrações sem sentido. Na verdade, cada verso e estrofe constrói uma história com começo, meio e fim, e ela está lá, para ser lida, por quem quer que tenha disposição de entendê-la. Há muito mais por trás disso do que nossos olhos são capazes de enxergar, e essa análise pretende mostrar exatamente isso.


Pass me that lovely little gun

My dear, my darling one

The cleaners are coming, one by one

You don't even want to let them start


Passe-me essa encantadora pequena arma

Minha querida, minha amada

Os higienistas estão chegando, um a um

Você nem mesmo quer deixá-los começar


Logo na primeira estrofe, somos confrontados com uma ideia assustadora: o narrador da música é um assassino. Afinal, quem mais chamaria uma arma de “minha querida, minha amada”? É com essa ideia de estranhamento que iniciamos a canção imaginando se a letra será tão macabra quanto as primeiras notas musicais. Além disso, também há a menção aos higienistas. Não sei se aconteceu com você também, mas eu senti um arrepio ao me deparar com este termo. Não sei explicar, mas isso não me remete a algo bom. A impressão que se tem é a de que o narrador está pedindo a arma a alguém para cometer um assassinato, e que logo, os higienistas chegarão para “limpar” a cena do crime.


They are knocking now upon your door

They measure the room, they know the score

They're mopping up the butcher's floor

Of your broken little hearts

O, children


Eles agora batem na sua porta

Eles medem a sala, eles sabem o resultado

Eles estão limpando o chão do açougueiro

De seus pequenos corações quebrados

Ó, crianças


A letra não diz, mas a gente sabe que o narrador está se referindo aos higienistas. Eles chegaram e estão limpando o “chão do açougueiro”. De novo, o teor macabro condiz perfeitamente com o tom musical fúnebre, porque um açougue é o destino final dos animais mortos e a que limpeza o narrador poderia estar se referindo senão à limpeza do sangue derramado pela “minha querida, minha amada” arma mencionada acima? E como se não bastasse tudo isso, há ainda a menção aos “pequenos corações quebrados”, o que, dada a situação, me faz pensar no assassinato de crianças.


Forgive us now for what we've done

It started out as a bit of fun

Here, take these before we run away

The keys to the gulag


Perdoe-nos agora pelo que fizemos

Tudo começou como um pouco de diversão

Aqui, peguem isto antes que a gente fuja

As chaves do gulag


A minha teoria se confirma na estrofe seguinte: o narrador pede perdão a alguém pelo que eles têm feito, e me parece coerente ser destinado aos donos dos “pequenos corações quebrados”, ou seja, as crianças mortas. Eu estranho o fato de que ele menciona que tudo começou como diversão, o que me leva a pensar nos mais hediondos crimes já cometidos na história que começaram exatamente desse jeito: como uma brincadeira sádica. No entanto, o arrependimento está ali, no terceiro verso — o narrador/assassino está fugindo para livrar a própria pele, mas antes, está entregando para as vítimas as chaves do gulag. Na primeira vez que ouvi a música, não consegui traduzir a palavra “gulag”. Isso aconteceu porque não existe tradução. Os gulags, pelo que sei agora, eram campos de concentração para trabalho forçado na antiga União Soviética, durante a ditadura de Stalin. Meu coração fica apertado toda vez que releio essa estrofe porque, ora, o narrador/assassino está entregando às vítimas as chaves do campo de concentração.


O, children

Lift up your voice, lift up your voice

Children

Rejoice, rejoice


Ó, crianças

Levantem sua voz, levantem sua voz

Crianças

Alegrai-vos, alegrai-vos


As peças começam a se encaixar nesse pequeno refrão que funciona como uma pausa de todo o horror que a história vem contando até agora. O narrador está pedindo que as crianças ergam suas vozes, que se alegrem, pois ele lhes deu a chave dos gulags, eles estão livres!, talvez por arrependimento, não é possível saber. As crianças que agora sabemos serem prisioneiros, encarcerados em campos de concentração. O narrador é o guardião dos prisioneiros, talvez o militar responsável pelo extermínio. Os higienistas são os responsáveis pela limpeza após o extermínio. Tudo horrível e difícil de ser assimilado, mas, calma, a música ainda mal chegou à metade.


Here comes Frank and poor old Jim

They're gathering round with all my friends

We're older now, the light is dim

And you are only just beginning

O, children


Aí vêm o Frank e o pobre, velho Jim

Eles estão se reunindo com todos os meus amigos

Estamos velhos agora, a luz está fraca

E vocês estão apenas começando

Ó, crianças


Aqui, somos apresentados a mais dois personagens, que pelo tom amigável do narrador, presumimos que são assassinos dos campos de concentração também. A frase “estamos velhos agora” dá a entender que o narrador, Frank e o “pobre e velho Jim” já estão cansados dessa vida de matança e há a implicação de que talvez, e só talvez, todos eles estejam arrependidos pelos horrores que cometeram. A repetição do termo “ó, crianças” me remete a um murmúrio de lamentação como o emitido por alguém em profundo sofrimento.


We have the answer to all your fears

It's short, it's simple, it's crystal clear

It's round about, it's somewhere here

Lost amongst our winnings


Temos a resposta para todos os seus medos

É curta, é simples, é cristalina

Ela está por aqui, em algum lugar

Perdida em meio às nossas vitórias


Qual seria a resposta para todos os medos das vítimas? “É curta, é simples, é cristalina”, e está por ali, perdida em meio às vitórias dos algozes das crianças mortas: a chave dos gulags. A chave para a libertade, para o fim do sofrimento, essa é a resposta, e pela primeira vez eu sinto um tom de autodepreciação na voz do narrador, como se ele estivesse repensando todas as suas “vitórias” já conquistadas.


O, children

Lift up your voice, lift up your voice

Children

Rejoice, rejoice


Ó, crianças

Levantem sua voz, levantem sua voz

Crianças

Alegrai-vos, alegrai-vos


The cleaners have done their job on you

They're hip to it, man, they're in the groove

They've hosed you down, you're good as new

They're lining up to inspect you

O, children


Os higienistas fizeram o trabalho deles em vocês

Eles estão nessa, cara, estão no ritmo

Lavaram vocês, estão novos em folha

Eles alinham-se para inspecionar vocês

Ó, crianças


E o tom macabro só piora: quando o narrador/assassino menciona os higienistas novamente, dizendo que “lavaram” as crianças e estão alinhados para “inspecioná-las”, somos forçados a lembrar do tratamento dado aos prisioneiros de guerra nos campos de concentração, que eram lavados e limpos antes de irem para as câmaras de gás. “Ó, crianças”, diz o narrador, como se estivesse lembrando e se lamentando por todas as crianças que condenou.


Poor old Jim's white as a ghost

He's found the answer that was lost

We're all weeping now, weeping because

There ain't nothing we can do to protect you


O pobre, velho Jim está branco como um fantasma

Ele encontrou a resposta que estava perdida

Estamos todos chorando agora, chorando porque

Não há nada que possamos fazer para protegê-los


Quando o narrador/assassino menciona a palidez do “pobre e velho Jim”, parece que enfim os algozes das crianças encontraram seu fim merecido: a justiça está sendo feita e agora é a vez dos assassinos chorarem. A que se faz, a que se paga, é o que diz o ditado.


O, children

Lift up your voice, lift up your voice

Children

Rejoice, rejoice


Ó, crianças

Levantem sua voz, levantem sua voz

Crianças

Alegrai-vos, alegrai-vos


Hey, little train! We are all jumping on

The train that goes to the kingdom

We're happy, ma, we're having fun

And the train ain't even left the station


Ei, trenzinho! Estamos todos embarcando

O trem que vai para o reino

Estamos felizes, mãe, estamos nos divertindo

E o trem ainda nem deixou a estação


É importante lembrarmos que os prisioneiros na época do Holocausto chegavam aos campos de concentração por meio de trens. Não me parece coincidência, portanto, que o autor da música tenha colocado exatamente esse elemento na história. As crianças estão embarcando no trem e estão felizes — talvez porque tenham sido libertas? Talvez porque não vão mais sofrer? E o mais curioso é que o narrador da canção não é mais o assassino: são as crianças que cantam agora.


Hey, little train! Wait for me!

I once was blind but now I see

Have you left a seat for me?

Is that such a stretch of the imagination?


Hey, little train! Wait for me!

I was held in chains but now I'm free

I'm hanging in there, don't you see

In this process of elimination


Hey, little train! We are all jumping on

The train that goes to the kingdom

We're happy, ma, we're having fun

It's beyond my wildest expectation


Hey, little train! We are all jumping on

The train that goes to the kingdom

We're happy, ma, we're having fun

And the train ain't even left the station


Ei, trenzinho! Espere por mim!

Estive cego, mas agora vejo

Você deixou um assento para mim?

Isso é um trecho da imaginação?


Ei, trenzinho! Espere por mim!

Eu estava acorrentado, mas agora estou livre

Estou pendurado ali, não consegue ver

Neste processo de eliminação


Ei, trenzinho! Estamos todos embarcando

O trem que vai para o reino

Estamos felizes, mãe, estamos nos divertindo

Está além da minha expectativa mais selvagem


Ei, trenzinho! Estamos todos embarcando

O trem que vai para o reino

Estamos felizes, mãe, estamos nos divertindo

E o trem ainda nem deixou a estação


Agora, nos resta analisar as últimas estrofes da música. As crianças dizem que estavam acorrentadas, mas que agora estão livres — liberdade, enfim. Elas dizem que estão num trem a caminho do reino. Mas que reino? É aqui que reside a constatação mais triste da coisa. Talvez elas não estejam a caminho de um país salvador que as libertou das mãos dos assassinos. Talvez elas estejam a caminho de um outro tipo de reino, onde não há prisões, nem maldade, nem tortura, nem morte. Talvez elas estejam a caminho não de um reino que lhes concederá abrigo, mas de um reino que lhes fornecerá paz e descanso eternos: o reino dos céus. “Você deixou um assento para mim? Estamos todos embarcando no trem que vai para o reino”.



Depois de toda essa análise, há ainda uma última observação a ser feita. É óbvia a conexão entre o significado da canção e o momento em que ela está inserida no filme Harry Potter e as Relíquias da Morte — Parte 1. Vale lembrar que Harry Potter conta a história de um menino de sangue mestiço que luta contra um bruxo tirano cujo principal objetivo é limpar a linhagem mágica até que existam apenas bruxos de “sangue-puro”. Qualquer semelhança com ditadores como Hitler, que provocou um extermínio em massa de todos aqueles que não se encaixavam em seu padrão de perfeição, não é mera coincidência.


A cena da dança de Harry e Hermione é um dos pontos altos do penúltimo filme, porque representa a extravasão de toda a tensão acumulada até ali, o medo que eles sentem de Voldemort e de seus Comensais, a preocupação com suas famílias naquele processo de extermínio, a pressão em encontrar as Horcruxes (a chave para a derrota do vilão) e a tristeza pelo abandono de um dos integrantes do trio. Me parece coerente que “O’Children” tenha entrado na trilha sonora justamente nessa cena, quando as esperanças parecem perdidas e os protagonistas tentam achar um pouco de alegria e beleza em meio a tanta destruição, nem que seja só por alguns minutos, assim como as crianças da música, se divertindo no trem depois de terem sido libertas dos gulags, todas elas, juntas, a caminho do Reino.

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