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  • Foto do escritorKatherine Carvalho

Uma análise da música "Tempo rei" de Gilberto Gil

Sempre tive uma relação conturbada com o Gilberto Gil. Às vezes eu detestava algumas músicas e, às vezes, como quando ouvia “Tempo rei”, ele quase se tornava um dos meus cantores de MPB favoritos. Mas talvez esse amor que sinto tenha mais a ver com a música do que com o cantor. Todo mundo sabe que o amor da minha vida é só o Chico Buarque. Porém, não posso negar que Chico Buarque nunca cantou uma canção tão bonita quanto essa do Gilberto Gil. Embora meu coração seja do Chico, essa análise é dedicada ao Gilberto. Espero que você goste.


Não me iludo

Tudo permanecerá do jeito que tem sido

Transcorrendo, transformando

Tempo e espaço navegando em todos os sentidos


A imprevisibilidade da vida, a incapacidade por vezes desesperadora de prever o que virá pela frente, a resignação em assumir que ninguém, nem você e nem eu, temos o controle sobre nada nem ninguém neste mundo. A primeira estrofe da música do Gilberto Gil me remete exatamente a isso: a constatação deprimente de que tudo permanecerá do jeito que tem sido, imprevisível e impetuoso como uma tempestade, e que de nada adianta a gente se assustar ou tentar impedir, de nada adianta se iludir. E tal qual a tempestade, essa coisa imprevisível altera tempo e espaço em todas as suas formas e dimensões, navegando em todos os sentidos, para trás e para frente, para os lados, para cima e para baixo, sem nosso consentimento, sem esperar convite. A única coisa que nos resta a fazer é soltar o corpo, encher os pulmões de ar, deixar-se boiar na superfície, deixar-se levar pela correnteza.


Pães de Açúcar, Corcovados

Fustigados pela chuva e pelo eterno vento

Água mole, pedra dura

Tanto bate que não restará nem pensamento


O símbolo do Rio de Janeiro, o morro do Corcovado, o Pão de Açúcar, monumentos naturais que representam a força, a implacabilidade, a história concreta de um país que enfrentou muitas adversidades e se mantém ali, firme, de pé, intacto, mas que apesar disso, também é fustigado pela chuva, porque como nós, não está imune. Como nós, é afetado pela tempestade, mas não é completamente destruído. Corroído, talvez, mas não extinto. Quando Gilberto canta “água mole, pedra dura”, nosso primeiro impulso é cantar em seguida “tanto bate até que fura”, mas a poesia, à guisa do tempo e do espaço, também é imprevisível, e o verso seguinte rima com a palavra “vento”, ignorando a continuação óbvia do ditado popular. Água mole, pedra dura, tanto bate que não restará nem pensamento. E de fato, um dia todos os monumentos estarão acabados, todos nós seremos lembranças mortas, todos os nossos vestígios serão apagados, e não restará um único pensamento sequer para dizer que, sim, estivemos aqui e vimos o Corcovado assomar sobre a cidade. Um pouco pessimista e mórbido pensar assim, eu sei, mas não deixa de ser bonito, e se você discorda, lamento.


Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei

Transformai as velhas formas do viver

Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei

Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei


Uma ode ao tempo, que na música de Gilberto, é o que rege toda a poesia. Odes são composições poéticas que celebram algo, caso você não saiba, e pra mim, aqui, faz todo sentido chamar, pelo menos esse trecho, de ode ao tempo, por que qual outra coisa ele estaria reverenciando na canção inteira? Aqui o tempo é rei e é ele que transforma as formas de viver, fustiga o Corcovado com chuva e vento, faz a vida navegar em todos os sentidos. Os dois versos seguintes do refrão, por mais que eu escute essa música repetidamente, ainda me deixam um pouco intrigada. Não há nenhuma outra alusão bíblica na letra — muito pelo contrário. Na verdade, a canção me parece quase inteiramente científica (vê-se a prova quando o cantor fala sobre a relação tempo-espaço e pensamento como fundamento do ser humano, como veremos na estrofe seguinte). Isso me leva a pensar que talvez Gilberto Gil quisesse representar essa dualidade entre religião e ciência, essa incerteza que alguns de nós temos, questões primitivas sobre de onde viemos, para onde vamos, quem criou tudo isso? Acho que o fato de ele misturar elementos bíblicos e científicos seria um sinal da indecisão humana: acredito na ciência ou na fé? E sabendo que tudo vai continuar sendo como tem sido, prefiro acreditar na imprevisibilidade do tempo-espaço ou numa força divina que rege todos nós? Porque nos dois últimos versos do refrão ele pede “ensinai-me, ó, Pai, o que eu ainda não sei” e pede socorro a Nossa Senhora, o que, a meu ver, é um indício de que até o cantor está dividido entre a ciência e a religião, e que isso seria (pra mim) uma prova de que as duas podem coexistir em harmonia. 


Pensamento

Mesmo fundamento singular do ser humano

De um momento para o outro

Poderá não mais fundar nem gregos, nem baianos


Na estrofe seguinte o cantor coloca o pensamento como fundamento do ser humano, e de fato, eu pensava assim antes mesmo de conhecer essa música. E não é só porque Descartes uma vez disse “penso, logo existo”, é porque eu sou a prova viva disso, e você também é. Aprendi na terapia (mas vou falar brevemente sobre isso porque esse assunto vai render outro post) que tudo começa na mente, um pensamento que gera um sentimento e, por fim, gera um comportamento. E se o ser humano é repleto de comportamentos e sentimentos complexos, é porque por trás disso tudo existem, antes, muitos e muitos pensamentos. Acho que minha psicóloga e René Descartes têm, afinal, muito em comum. Mas voltando à música: aqui retornamos aos termos científicos quando o cantor afirma que, de um momento para o outro, o pensamento não poderá mais fundar nem gregos nem baianos. Porque, ora, por mais discrepantes que sejam as nações, as raças, os credos, as etnias, o fundamento não é sempre o mesmo? Não se origina tudo de um único pensamento? Então se acabar, acabamos todos juntos. Isso é uma palavra de conforto, você não acha? No fundo não somos tão diferentes assim.


Mães zelosas, pais corujas

Vejam como as águas, de repente, ficam sujas

Não se iludam, não me iludo

Tudo agora mesmo pode estar por um segundo


A última estrofe antes do último refrão me faz pensar seriamente em apocalipse. O cantor cita mães zelosas, pais corujas, que testemunham as águas de repente ficarem sujas, e faz um apelo, pedindo que eles, assim como o próprio Gilberto, não se iludam. Tudo pode estar por um segundo e de nada adianta fugir ou se esconder. A música toda, na verdade, me remete a uma sensação fúnebre de fim, embora o toque e a melodia sejam alegres e até agitados. A questão do tempo e do espaço que transformam a vida sem piedade, o Corcovado fustigado pela chuva, o pensamento que, em determinado momento, não vai mais fundar nenhum ser humano, o cantor pedindo socorro a Nossa Senhora. Se for parar pra pensar, é uma letra meio mórbida, só que disfarçada. 


Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei

Transformai as velhas formas do viver

Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei

Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei


Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei

Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei

Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei

Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei


Gilberto Gil finaliza a canção repetindo várias vezes a frase principal do refrão, que é também o título da música. “Ó, tempo rei”, como se fosse um mantra, ou uma oração, dita tanto em momentos de extremo êxtase, quando você expressa toda a sua gratidão ao que quer que você acredite, religião ou ciência, quanto em períodos de intenso desespero em que você clama por ajuda, seja de quem for, seja de onde vier. Eu gosto particularmente de como a canção vai morrendo aos poucos, o som diminuindo e a voz do Gilberto se esvaindo devagarzinho, em vez de um corte seco e súbito para indicar o fim da música. Esse detalhe em especial me remete a como a vida às vezes é assim mesmo. Não um fim seco e repentino, mas um encerramento lento, que pode levar dias, meses, até anos, e que a gente não percebe que está acontecendo até ter, de fato, acontecido.  

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Por Katherine Carvalho

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