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  • Foto do escritorKatherine Carvalho

Utopia paulista

Saio de casa, a chave não emperra. O elevador não demora, e quando chega, a pessoa que vem com ele até me dá bom dia. Pergunta como foi minha noite de sono, e eu tenho o prazer de responder que dormi bem, não tive pesadelos, minha pele amanheceu com poros lindos e fechados e acordei sem nenhuma preocupação quanto ao meu trabalho no dia seguinte pois meu chefe é um amor de pessoa e nunca é injusto comigo.


No térreo, o porteiro me entrega uma carta, e não é uma conta, nem multa. É um prêmio de

100 mil reais por ter plantado a milésima árvore do parque do Ibirapuera, que, aliás, está lotado hoje. As pessoas adoram passar o tempo ao ar livre no Ibirapuera, aproveitando o sol e exaltando a natureza. Talvez eu dê uma passada lá à tardinha.


Por falar em sol, hoje o dia está lindo. Vi a previsão do tempo antes de sair de casa e a chance de chuva é de menos de 0%. A falta dela, porém, não me preocupa. Dei uma olhada nas notícias da reserva da Cantareira, e a água está lá, intacta, quase transbordando, porque a população de São Paulo faz racionamento sem o governo pedir. Me repreendo internamente. Hoje demorei três minutos no banho ao invés de dois. Tive que lavar o cabelo. Amanhã eu passo mais desodorante, ninguém precisa de banho todo dia.


Meu carro pega na primeira tentativa apesar de ter passado por três donos antes de mim e datar de 1985 nos documentos. Não sinto cheiro de queimado no motor, e ele tampouco derrapa na ladeira perto da minha casa. A ladeira não tem buracos, o asfalto é lisinho e cheira a flores. A prefeitura refaz o recapeamento toda semana, sem ser necessário reclamar no Fantástico.


As ruas estão livres. Todos os semáforos estão abertos, a luz verde constante indicando que não há risco de acidentes. Ninguém conduz embriagado, ou manda mensagens de texto enquanto dirige, por que diabos precisaríamos da cor vermelha no semáforo? Não há trânsito em São Paulo. E quando há, não se ouve buzinas ou xingamentos. As pessoas colocam as cabeças para fora das janelas dos carros e conversam entre si, sobre o clima, sobre a vida, sobre a escola das crianças que estão nos bancos de trás. Elas esperam o tráfego andar pacientemente.


Hoje, eu saio do carro para ajudar uma velhinha a atravessar a faixa de pedestres e ninguém

reclama do meu carro abandonado no meio da rua. A velhinha caminha a menos de 2 km/h e ainda me dá uma gorjeta de 15 reais quando chegamos à calçada oposta. “Obrigada, minha filha, Deus abençoe”. Fosse outros tempos, eu teria ficado ofendida por receber dinheiro de uma completa estranha, mas nessa utopia paulista, coisas assim acontecem. É normal.


No trabalho, encontro um buquê de flores em cima da minha mesa com um bilhete: “Minha

querida. Não se preocupe com o erro que cometeu no pagamento do cliente ontem. Acidentes acontecem. Nós perdemos uma boa fonte de renda, mas não estou zangado. Fique tranquila. Passe na minha sala no final do dia para receber um aumento. Um beijo do seu chefe.”


Ligo meu computador em singelos dois segundos. Literalmente. Não existe a profissão de assistente técnico, os computadores nunca pifam por aqui. Ontem mesmo a Ana do quinto andar alegou estar com exatas quatro mil, quinhentas e setenta e sete abas do Google Chrome abertas, e acreditam que o computador dela não travou? Muito pelo contrário, o servidor rodou ainda mais rápido. Realmente maravilhoso. Quis testar no meu (vai que ela estava mentindo) e bati o recorde: abri quatro mil, quinhentas e setenta e OITO abas. Também não travou. Fiquei tão feliz que paguei o almoço para o meu chefe.


O garçom me pergunta se estou fazendo alguma dieta especial, pois estou muito magra e esbelta. Eu digo que não, é apenas meu hábito diário de praticar exercícios físicos, ingerir bastante líquido e, de vez em quando, ir pedalando para o trabalho. Assim eu aproveito e contribuo para a regeneração da Camada de Ozônio. Eu e o garçom trocamos algumas amenidades antes de ele anotar o meu pedido. Todos os clientes saem do restaurante satisfeitíssimos, sem nenhum prato atrasado e com sobremesas de graça. Meu chefe pergunta se não quero tirar o resto do dia de folga, afinal, estou trabalhando muito ultimamente. Recuso a oferta e volto para o trabalho sem nem um pingo de suor apesar do sol quente de verão.


No RH, eu oriento alguns funcionários a contratarem dois bolivianos sem nenhuma experiência, sem os pré-requisitos necessários e que, inclusive, não sabem falar português, e eles logo têm suas carteiras assinadas. Meu chefe lhes dá as boas-vindas com uma cesta de café da manhã em plenas 16h da tarde, dizendo que São Paulo fica muito feliz por tê-los ali. É um dia lindo no trabalho.


A caminho de casa, eu ligo o rádio dentro do carro. Não há chiados, obviamente, e tem horário político sendo transmitido. Eu adoro o horário político. Os candidatos a presidente falam apenas sobre igualdade e amor, tolerância e compaixão, enquanto os candidatos a governador prometem distribuir três merendas por criança a partir do próximo mandato. Sorrio enquanto dirijo porque sei que estou ouvindo verdades. Os políticos não mentem. Não aqui, na utopia paulista.


Passarinhos cantam nas árvores plantadas ao longo do calçamento. Pessoas correm com seus fones de ouvido e cachorros nas guias. Artistas de rua no farol não pedem dinheiro depois de terminarem seus shows, porque eles são ricos. Eles fazem arte nos cruzamentos por pura diversão e amor à profissão. Mesmo assim, eu ponho a cabeça pra fora da janela e bato palmas. Outros motoristas me acompanham e logo a cidade está repleta de aplausos. Outros artistas, em outras esquinas, em outros bairros, também estão sendo aplaudidos.


Em casa, à noite, ligo a TV e vejo as notícias. A inflação desceu. Pessoas estão viajando aos Estados Unidos por preço de banana, mas não querem morar lá. Quem abandonaria essa utopia paulista? Os preços nos mercados baixaram, na esquina de casa há uma mercearia que dá alimentos de graça às pessoas das classes mais baixas. Eles os dariam aos moradores de rua. Se houvesse moradores de rua. Mas não há. Os colégios reduziram as mensalidades, e a qualidade das escolas públicas é muito superior às particulares. Cadeias estão fechando as portas por falta de delinquentes, alguém já ouviu falar em redução da maioridade penal? Aqui, na utopia paulista, isso não é necessário. Canis, na verdade, nunca existiram — não há animais abandonados.


No meu jantar, não há nenhum agrotóxicos — a Agro aqui, realmente é pop e é tudo. Eu tampouco tomo antidepressivos como sobremesa. O ritmo urbano é tão tranquilizante que meu emocional não sofreu nenhum dano a vida inteira, nem os neurônios pararam de funcionar devido ao estresse. Eu lavo a louça com uma torneira elétrica, sabia que elas já vêm instaladas em todas as casas? Ninguém mais precisa lavar a louça com água fria no inverno. Isso é coisa do passado.


As luzes são apagadas a hora que eu quiser. Sem toque de recolher, sem hora pra levantar

amanhã.


Eu me cubro com um edredom na minha cama, e antes de dormir, eu acordo.

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Por Katherine Carvalho

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